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Diário de confinamento: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'

Com pessoas mascaradas em cadeiras simetricamente distanciadas, parecia um filme distópico dos anos 1960

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Barcelona

Dia #92 - Sábado, 13 de junho. Cena: refiz a PCR. Depois de 12 dias de um positivo, sou negativa, livre para comprar meus espinafres na feira again.

Clarence Bekker, figura algo lendária da noite de Barcelona, é um cara de sorte.

E quem desfruta de sua arte também. O sorriso pachamama dissolve-carranca. O dom artístico/messiânico/atlético de mover o corpo james-brownmente em harmonia, ao mesmo tempo pontuando com fôlego milagroso o ritmo da big band que o acompanha, com zero-perdas na voz bluesy megatrônica (sou cantora e, se eu dançar assim, não consigo nem sussurrar "alfafah" no microfone).

Conjurando boa vibe, no mejor estilo soul.

E o que dizer da conexão com o público, que, mesmo sentadinho, mesmo quase de pé, decolando da beirada das cadeiras com seus metros de distância, máscaras e temores —vai ao delírio?

Essa foi a atmosfera do primeiro concerto em Barcelona depois de um longo e tenebroso (não pude evitar) hiato viral de confinamento.

Público do show de Clarence Bekker, em Barcelona, usando máscara e mantendo o distanciamento social
Público do show de Clarence Bekker, em Barcelona, usando máscara e mantendo o distanciamento social - Josep Lago - 28.mai.20/AFP

Com as pessoas mascaradas e sentadas em cadeiras simetricamente distanciadas, iluminadas pela luz azul do salão, mais parecia um filme distópico dos anos 1960 do que uma noitada usual (mas o que é usual no novo normal, não é mesmo).

Aconteceu no Jamboree, um dos clubes de jazz mais tradicionais da cidade, para 30 privilegiados —lotação máxima permitida pelas novas regras.

Sem bebidas alcoólicas, sem o sangue suor e lágrimas em que costuma(va) se dissolver a pista daquele porão numa praça histórica do centro em noites febris até um passado recente.

A tudo Bekker, 52, pôde assistir de camarote, uma vez que estava exatamente no centro da cena —liderando a Clarence Bekker Band, uma das big bands mais legalzis de Barcelona, com um repertório enérgico de grooves, soul e jazz.

Bekker, sendo o cantor, era o único ser humano sem máscara no recinto. Até os músicos e o fotógrafo da casa estavam com a cara tapada.

"Foi como voltar a um clube de jazz 'old school' dos anos 1930, sabe, com pessoas em mesas e sofás", lembra.

Esse holandês nascido no Suriname, há 15 anos vivendo em Barcelona, teve o privilégio de ser o primeiro crooner a se apresentar na cidade pós-Covid.

"A plateia estava de máscaras, então eu não podia ver suas emoções, não podia ver as pessoas se divertindo", diz. "No começo foi um pouco estranho, mas, como tudo o mais, vamos ajustando. Depois de semanas em que o único entretenimento era o noticiário sobre a Covid, as pessoas estavam ávidas por diversão."

Isso foi há quase três semanas, no final de maio. A casa abriu mais por paixão e compromisso do dono (que recrutou a família para trabalhar) do que pensando em lucro.

Agora, Bekker volta aos palcos do Jamboree, com algumas diferenças sutis —mas esta é uma época de lentos, cautelosos avanços, então.

A lotação máxima de cada entrada (a casa opera com duas por noite) passou de 30 a 50 pessoas, acompanhando o avanço da desescalada nesta semana; drinques alcoólicos agora são permitidos, mas só nas mesas, nada de se encostar no balcão; máscaras são obrigatórias a todo momento; terminou, saiu.

"Pouco a pouco, as pessoas estão saindo", diz Bekker, habitué da programação dessa sexagenária casa de shows há uns três anos, com público cativo na cidade, entre estrangeiros e locais.

"Na primeira semana, só tínhamos pessoas da vizinhança [a locomoção estava limitada a um raio de 1 km do local de residência], e agora gente de toda a Barcelona tem vindo."

O cantor, porém, que já experimentou o gosto do sucesso mainstream quando emplacou um top 100 europeu com "It's a Loving Thing", de 1994, não vê o futuro pós-crise com muito otimismo para o mundo da música ao vivo, e acredita que os grandes shows e festivais ficarão pelo menos para o ano que vem.

"Acho que a cena dos concertos vai ser pequena", diz. "Embora as pessoas estejam começando a sair, creio que muitos vão ficar em casa, porque ainda há muita gente com medo de ser infectada."

"Como músico, não vejo a hora de que tudo isso acabe e nós voltemos ao normal. E espero que essa Covid não volte", completa.

Eu também, e você, provavelmente a um ou mais oceanos de distância. Como entoa Bekker em um de seus números mais supermegablasterrr soul, canalizando a emoção vocal transcendental de Otis Redding: "But while she's there waiting / Without them try a little tenderness / That's all you got to do-oooh..."

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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