Dia #93 - Domingo, 14 de junho. Cena: em toda a Espanha, houve 1.737 infectados e 26 mortes por coronavírus na última semana.
O dinheiro vivo —moedas, notas, troco, caixinha, cofrinho, fezinha, enfim, a vil e ultraviajada bufunfa foliometálica em todas as suas variações materiais, a não ser plásticas— pode estar com os dias contados por aqui.

A proposta “não-de-lei” partiu nesta semana do Executivo espanhol, que meteu a ideia de “eliminação gradual do pagamento em espécie, com horizonte de sua desaparição definitiva” em meio ao anúncio de gordas medidas tributárias relacionadas a fraudes fiscais.
Em toda a parte desde o advento do vírus, pagar com cartão vem sendo a recomendação ululante, e essa tendência parece que veio mesmo para ficar.
A preferência por esse modo de pagamento, reiterada por cartazes e recadinhos do corazón em zilhares de estabelecimentos comerciais por todo o país, inclui o tal NFC ou "contactless" por celular, e sofreu um um boom durante o "lockdown" espanhol, junto com as compras virtuais.
O aumento do limite para transações sem PIN, de 20 para 50 euros (R$ 117 para R$ 294), também ajudou nisso. O negócio era/é não tocar, flutuar.
Eu mesma praticamente deixei de carregar dinheiro em espécie durante o confinamento, algo impensável apenas alguns meses atrás, seguindo recomendação do Ministério da Saúde e de alguns epidemiologistas.
Uma das únicas exceções nessa neopaúra ao dinheiro vivo são as lojas de produtos orientais, chamadas aqui de “tiendas chinas”.
Tanto os magazines de variedades quanto as lojas alimentícias do tipo continuam, não raro, só aceitando cartão em transações a partir de determinado valor, para driblar as tarifas desse tipo de serviço.
No mercado de produtos frescos orientais perto de casa, inclusive, nem isso: várias vezes a maquineta não está nem funcionando. E ai de ti se insistir: pode levar uma dardada do olhar implacável da chinesa dona do negócio, imune a mesuras cotidianas tipo "oi", "tudo bem" e "gracias".
Outro dia, vencida por um duelo de 0,0005 milissegundos de olhares 43, tive que abandonar a acelga japonesa e ir tirar dinheiro no caixa eletrônico —uma atividade cada vez mais rara em minha vida e na de outros muitos conhecidos nesses tempos pós-Covid.
Creio que ao longo do confinamento fui só uma vez no banco.
Outro fenômeno que se popularizou enormemente foi a utilização de apps de pagamento instantâneo entre particulares.
O mais conhecido nacionalmente é de longe o Bizum, um aplicativo espanhol lançado em 2016 por uma rede de 24 bancos que cobrem 96% do mercado nacional. No final de maio, contabilizava 8 milhões de usuários.
Entre eles, uma amiga, professora de ioga, que nunca havia dado aula virtual até a quarentena, provou, com muita reticência, e triunfou: agora, recebe por Bizum, muy feliz, o pagamento de uma média de 15 a 20 alunos por sessão.
Durante o confinamento, muita gente recorreu à app para fazer compras para outras pessoas em supermercados e farmácias.
E também pra pagar cursos online, jogos virtuais coletivos e assinaturas compartilhadas (Netflix pra 48.709 pessoas, alguém?).
Embora a maioria dos usuários do Bizum seja da ala mais jovem (60% estão entre 25 e 44 anos), o “dinheiro alternativo” também está triunfando, pouco a pouco, entre as gerações mais velhas.
Na Espanha, por exemplo, 36% das pessoas entre 61 e 65 anos afirmaram haver aumentado o uso de pagamentos digitais durante o confinamento, e 30% a partir de 66 anos.
Seja como for, dinheiro de plástico, papel ou virtual, a OMS já avisou que o problema maior não é o infinito circuito de passa-dinheiro, e, sim, não lavar a mão depois de tocar qualquer coisa. Vocês sabem: lavem.as.mãos.
Terminado o confinamento, vou reintegrando pouco a pouco o dinheiro vivo na minha rotina.
Recebo de troco, trago para casa e, por algum até agora não muito sondável/sondado motivo psicológico, vou guardando tudo em tilintantes bolsinhas, como um corvo diligente, o olho vítreo perdido no augúrio de dias melhores. Até o fim dos tempos. Croaac.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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