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Diário de confinamento: 'O vírus segue sendo uma ameaça'

Desvios no caminho para fazer novo exame de Covid-19 me fazem parecer que estou num videogame

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Barcelona

Dia #88 – Terça, 9 de junho. Cena: o noticiário diário começa a migrar para outros temas, como a investigação sobre o caso de corrupção da realeza espanhola.

"We don't need another heeee-rooooo" é a música da Tina Turner que me recepciona, junto com dois enfermeiros completamente embrulhados em EPIs (equipamentos de proteção individual).

Achei graça, mas o ambiente é solene. Estou na sala super isolada onde fazem as provas de Covid no posto de saúde perto de casa, um dos maiores de Barcelona.

O radinho sintonizado na FM no canto do amplo recinto é quase o único objeto de uma cena de resto asséptica, limitada a uma cadeira em que me sento e aos bastõezinhos & demais apetrechos sanitários.

Pessoas em casa de repouso em Navalcarnero, próximo a Madri, despedem-se a distância
Pessoas em casa de repouso em Navalcarnero, próximo a Madri, despedem-se a distância - Susana Vera - 8.jun.20/Reuters

Estou aqui pra fazer meu segundo teste PCR, depois de um primeiro resultado positivo assintomático coletado dez dias atrás.

Segundo o protocolo sugerido pela OMS, esse é atualmente o tempo médio para um primeiro check-up de um quarentenado com Covid. Se der negativo, recebo alta. Em alguns casos, porém, minha médica me advertiu, já se chegou a ver positivos que assim permanecem por várias semanas.

Enquanto o país vai avançando na desescalada pós-pandemia, tenho mantido uma quarentena estrita em casa, da sala pro quarto pro banheiro pro terraço, rinse, repeat.

Ontem encomendei a compra de supermercado da semana por um app que tem se tornado popular na cidade, principalmente entre estrangeiros, chamado Ulabox —mas poderia ter ido de Glovo, por exemplo, que durante o confinamento teve um aumento de 70% em seu catálogo de lojas alimentícias.

O único que não está rolando na cidade é comprar diretamente dos principais grandes supermercados: a fila pra entrega em domicílio em uma das maiores redes de Barcelona é de quase uma semana.

Deixar o isolamento para ir ao centro médico tendo Covid me parecia uma temeridade. A hora marcada (10h30), além do mais, coincide com a faixa horária que privilegia as saídas de idosos, das 10h às 12h.

Encontro no caminho com muitos deles, passeando ou indo às compras, e faço desvios voluptuosos, atravesso ruas, prendo a respiração, me sinto num videogame.

Nesse sobressaltado estado de espírito, esperando para entrar no posto de saúde com outras pessoas, todas distanciadas entre si como se preparadas para encetar uma coreografia de musical a qualquer momento, tive um super susto com a primeira senhora que se aproximou (muito) de mim, cabelo branquinho, e sussurrou, educada: você é a última da fila?

Eu automaticamente me afasto, faço que sim com a cabeça, segurando o ar e virando a cara, num milissegundo pensando se digo-ou-não-digo, minha senhora, afaste-se de mim, afastem-se todos!

Da segunda senhora, quase fujo. Se eu tiver que me explicar, pensei: vão entrar em pânico? Ou têm o mesmo e por isso estão aqui? E principalmente: quantas gotas de saliva pode expelir uma pessoa mascarada ao dizer "cuidado, tenho coronavírus"?

Na desescalada espanhola, voltamos pouco a pouco a nos amontoar nas ruas, praias e áreas fechadas como bares, restaurantes, casas de shows, lojas de departamentos e escolas.

Os horários restritos para passeios deixam de existir a partir desta semana, com exceção da faixa reservada para os maiores de 70 (entre 10h-12h e 19h-20h, embora possam variar segundo o território).

O transporte público volta a funcionar a 100%, para aflição e confusão de muita gente, que já estava se acostumando à ideia de manter distâncias mínimas.

Meu teste PCR de hoje é mais completo. No primeiro, foi só uma estocada numa narina. Desta vez, um bastão vai pra garganta, outro é cortado em dois e metido nas duas narinas.

Em cada orifício, a enfermeira conta até cinco, enquanto gira o dito a profundidades assaz desconfortáveis. "Susssana, não se mexa." Um minuto e muitas lágrimas depois, segurando a tosse reflexo, sou liberada e volto pra casa, reprise do videogame. O resultado sai em até três dias.

Enquanto sigo quarentenada, assim como as pessoas que tiveram contato comigo, dou uma bizoiada no decreto da Nova Normalidade (sic) lançado hoje pelo governo espanhol.

Nas pouco mais de 30 páginas desta Nova Cartilha do Cidadão Pós-Covid, poucas novidades.

Trata-se de um compêndio das regras e sanções desenvolvidas ao longo das últimas semanas, uma guia de referência para empresas e indivíduos navegarem os novos tempos uma vez termine o estado de emergência, no próximo 21 de junho.

Novo novo novo, essa palavra que já está tão pisada que quase virou velha.

Um dos itens básicos: quem for pego sem máscara (obrigatória para todos os maiores de 6 anos) poderá levar uma multa de 100 euros (R$ 555).

O documento vai valer por tempo indeterminado, até que apareça uma vacina ou tratamento.

Até lá, teremos que "aprender a conviver com o vírus” e confiar na “responsabilidade individual”, segundo o ministro da Saúde espanhol, Salvador Illa.

No pronunciamento número 18.457.098 do estado de emergência, que está a ponto de completar três meses, a porta-voz do governo María Jesús Montero enfatizou, pro caso de o cidadão recém-desconfinado ter memória curta: "Sem vacina ou tratamento, o vírus segue sendo uma ameaça".

"Não podemos pensar que o perigo passou."

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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