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Diário de confinamento: 'Pandemia, crise e racismo'

Foi preciso que um jogador de futebol se metesse pra que a coisa ganhasse visibilidade midiática

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Barcelona

Dia #82 – Quarta, 3 de junho. Cena: Congresso aprovou hoje a sexta prorrogação do estado de alarme, válida até 21 de junho.

Neste momento de ânimos acirrados e mobilizações #blacklivesmatter pela morte de George Floyd e muito mais, um episódio emblemático vem destacando a questão do racismo nas manchetes espanholas.

E, verdade seja dita, foi preciso que um jogador de futebol se metesse pra que a coisa ganhasse visibilidade mediática.

Keita Baldé, do Monaco, um catalão de família senegalesa de apenas 25 anos que começou sua carreira na base do Barça, anunciou que vai pagar de seu próprio bolso o alojamento, comida e "algo de roupa" para os cerca de 200 trabalhadores temporários que se encontram em situação de rua em Lleida, um dos principais centros de produção de hortifrúti da Catalunha.

Apesar da relativa fama e da oferta de Baldé, a princípio nenhum hotel da cidade se disponibilizou a hospedar os "temporeros" —segundo a associação de hotelaria local, devido à saturação de demanda dos últimos dias.

O jogador de futebol Keita Baldé - Divulgação

Agora, com a ajuda de Nogay Ndiaye, uma afiliada da Plataforma Fruta com Justiça Social, Baldé está negociando o aluguel de um edifício inteiro de três andares na cidade para hospedar, por enquanto, cerca de 60 pessoas. O jogador e outros ativistas denunciam a falta de cooperação dos estabelecimentos da região.

A maioria dos trabalhadores em questão é de origem africana, principalmente senegalesa, embora entre os "temporeros" também sejam comuns, por exemplo, imigrantes latino-americanos e do leste europeu.

"Não busco uma guerra social ou moral, nem de raças, nem de origens", declarou Baldé em suas redes sociais. "Quis ajudar os 'temporeros'. Estavam na rua, sem comida nem nada. Trabalham 12 horas por dia. A maioria é senegalesa, e quis fazer o que está em minhas mãos para lhes facilitar a estadia."

Em abril, com o fechamento das fronteiras, associações de camponeses e governos fizeram uma tremenda campanha para recrutar mão de obra doméstica. A resposta foi uma loucura.

Eram desempregados, estudantes e imigrantes ilegais, todo mundo fazendo fila para bolsas de trabalho e contratos temporários.

Em Lleida, o grupo ajudado por Baldé concentra imigrantes que já se encontravam no país antes do confinamento, legal ou ilegalmente, trabalhando como "manteros", que é como são chamados aqui os vendedores ambulantes.

Presença ululante no centro de Barcelona, ali costumam estender seus lençóis com tênis, bolsas e óculos de sol com logos de grifes, pelo menos até que venha a polícia —uma cena indefectível da paisagem urbana barcelonesa e, infelizmente, ainda hoje, o contexto predominante em que são vistos afrodescendentes por aqui.

Com o "lockdown" e a evasão turística, também acabou o trabalho nas ruas. Motivo pelo qual pessoas como Serigne Mamadou, um senegalês de 42 anos que vive em Barcelona, se dirigiram a Lleida em busca de trabalho no campo.

Em um vídeo que viralizou nas redes sociais, Mamadou mostra as condições em que dormia com colegas debaixo de uma marquise no centro da cidade, sobre leitos improvisados de papelão.

"Nós queremos pagar [por alojamento]", disse, em um muy articulado castelhano. "Necessitamos de cama, água e comida quente, porque estamos aqui para dar a cara, para recolher as frutas. Se vocês querem que façamos a colheita em seus campos, pedimos o mínimo."

Depois que a polêmica ganhou os noticiários, a prefeitura de Lleida providenciou um ginásio fora da cidade para alojar os "temporeros".

Também montou uma tenda para testá-los para Covid-19, chamando a imprensa, para crítica de associações vinculadas aos direitos dos trabalhadores.

"É vergonhoso que transformem uma prova médica em espetáculo, violando a privacidade dos afetados", comentou uma ativista local ao El Diario. Também três hotéis da cidade já se ofereceram para receber cerca de uma centena de trabalhadores.

Segundo a União de Camponeses da Catalunha, o "lockdown" levou a uma redução de 25% da mão de obra disponível para dar conta das colheitas da estação.

Em teoria, os contratantes do campo têm a obrigação de oferecer alojamento e alimentação aos trabalhadores, segundo determinadas condições (por exemplo, distância e facilidade de acesso aos locais de trabalho), em troca de descontos do salário, que costuma oscilar entre 1.000 e 1.300 euros (R$ 5.700 a R$ 7.400).

Eu tenho amigos que consideram a hipótese de se mandar para os campos em breve. Com ou sem diploma universitário, com ou sem seguro desemprego, azuis, verde-bandeira ou marcianos —a perspectiva de uma longa recessão está levando muita gente aqui a reimaginar o futuro.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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