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Diário de confinamento: 'Terminar para recomeçar'

As muitas histórias do confinamento e uma carta de despedida

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Barcelona

Dia #100 – Domingo, 21 de junho. Cena: Espanha contabiliza hoje 246.272 casos de Covid e 28.323 mortos, 29 nos últimos sete dias

Queridos Compañeros Seres Humanos do planetazul:

Enrolei cem vezes pra começar este texto.

Enxuguei as lágrimas, borrei o rímel e borrei de novo.

Hoje, 21 de junho, escrevo meu centésimo e último texto desta coluna.

Hoje, 21 de junho, domingo quente pa p###, termina o estado de alarme na Espanha e começa oficialmente o verão no Hemisfério Norte. Os jornais fazem retrospectivas e balanços sobre a pandemia.

homem olha gente na praia
Espanhóis voltam à praia em Barcelona, no dia que marca o fim do estado de emergência no país - Nacho Doce/Reuters

Eu tinha criado uma bolha quentinha de refúgio ao longo desses cem dias de confinamento & Diário de Confinamento (olhaí, tô chorando de novo) e não tinha me dado conta.

Do que você não se deu conta ao longo desses últimos cem dias?

(Pergunta tortíssima, não?)

Hoje, e eu sei graças às conversas com meus muitos amigos espalhados pelo globo, completam-se mais ou menos cem dias de quarentena em muitas esquinas do mundo, não só aqui na Espanha. Fogos de artifício, mudanças de estação, eclipses. A conta do mês, o trimestre é a gravidez de um puma.

A gente às vezes pode pensar que a vida parou durante esse tempo de confinamento; mas não, tanta coisa aconteceu, eclodiu, explodiu. Cada caminho com suas alamedas.

Uma amiga paulistana nem sequer pega o elevador há mais de dois meses. Outra se apaixonou por um gajo além-mar, empreende mil magias xamânicas online e dança, muito. Um terceiro, médico, não viu quarentena —viu, sim, muita gente falecer, sobreviver, celebrar, entregando-se a suas cansadas e incansáveis mãos com 1.857.098 capas improvisadas de proteção.

Amigos músicos e artistas montam coletivos, colaborações, selos. Falta trabalho, mas pouco a pouco voltam as "gigs" (como a gente chama os shows, jargão anglófilo da náite) em algumas partes do mundo.

Meu ex-marido, tremendo produtor e pianista, recém-mudado para Lisboa, me conta feliz e algo surpreso que já tem shows marcados para julho; por outro lado, um amigo americano, do Cirque du Soleil, sabe que o espetáculo pode não continuar e já se meteu em seu estúdio durante essa quarentena pra gravar novo disco, novas ideias, novo-tudo.

Outra amiga brasileira, na distante Doha, no Qatar, contempla o mar do Golfo Pérsico pela janela enquanto pensa em sua família do outro lado do mundo, igualmente confinada.

Enquanto as fronteiras seguem fechadas, o jeito é fazer videochamada. Depois de um período introspectivo-incubatório durante a quarentena, está montando uma empresa e descobrindo novos dons.

Quanto aos conhecidos na Espanha, sobretudo imigrantes, muitos estão preocupadíssimos. Alguns não têm trabalho, e o confinamento matou sua fonte de renda (a loja, o cliente, a empresa).

Uma amiga peruana, há mais de 30 anos fora de seu país, vem se virando fazendo faxina ocasional em escritórios.

Exausta aos seus quase 60 anos, comentou outro dia que colou na fila da comida social "pra ver como era" e que tem se alimentado basicamente de grãos pra economizar as minguadas reservas de dinheiro.

Microempréstimos entre amigos têm sido cada vez mais comuns. Também boas ideias: uma conhecida-de-conhecida com um guarda-roupa de luxo montou um leilão online com as peças e, com o dinheiro, comprou e distribuiu um monte de cesta básica. Assim de prática.

Outra querida hermanita, morando em Sorocaba, interior de São Paulo, e voluntária no belo projeto social Rede Solidária Sorocaba, nascido para ajudar famílias carentes da região durante a pandemia, festejou: "Esses dias entregamos mais dois lotes de 1.160 cestas de comida agroecológica. Missão cumprida, coisa bonita de fazer!".

Meu amigo George, guitarrista de blues em Austin, no Texas, me conta que descobriu o prazer de relaxar numa barraca no quintal, montada quando seu filho chegou de outra cidade e teve que se isolar por duas semanas.

Terminada a quarentena, a barraca segue aí e, me conta, oferece "um refúgio, com tanta gente em casa [entre outras, sua mãe, de 92 anos]".

"Agora mesmo, temos aqui mais casos e hospitalizações do que nunca", me escreveu ontem. "Você deve ter notado que 'Amerika' está também em guerra consigo mesma de novo... É fácil se sentir desencorajado, mas não podemos parar."

Cem dias de solidão pra muitos, de descobertas pra outros.

Eu descobri que posso escrever e soltar, mesmo que doa. Porque escrever é pra mim mais flor-da-pele e íntimo do que postar selfie e esperar por likes.

(lágrimas, lágrimas)

Eu descobri, talvez como vocês, que o ser humano tem medo, é solidário, egoísta paka, só muda de endereço, é incrível, sempre dá um jeito. Que se reinventa, que ajuda, que é capaz de mudar, que não muda nunca. Que é um bicho danado.

Eu poderia falar sobre mil pequenezas da tal Nova Normalidade espanhola ("Ai, acho tão cafona essa expressão" —lembrei de uma amiga comentando comigo hoje), mas creio que nenhum Compêndio Informativo Sobre A Gravidade da Situação Mundial importa tanto quanto o que temos e podemos aprender de tudo isso.

"E eu, que sempre me pergunto o que vem depois dos finais,
sempre que vejo o roll, sempre que durmo,
sempre que canto, penso que termino,
mas não vai embora,
tamborila aqui comigo;
e é presente como a mais perfeita gota
que meu corpo, tamarizado,
revirado em globos egípcios,
pode, em toda sua concentração —plup."

(Susana Susaniña, cadernos anônimos —quero lançar uns poemelhos, alguém ainda pensa em poemas? Outra pergunta tortíssima)

Sim, temos minissurtos pós-desconfinamento rolando na Espanha, mas nada aparentemente incontrolável —por enquanto.

O fato de que não houve até agora um boom de novos contágios, mesmo após um mês e meio de processo de desconfinamento e muita over-ânsia social dos ciudadanos, tem espalhado uma perigosa falsa sensação de Superação do Mal.

Sim, à boca pequena, temos medo de um segundo surto. Ao mesmo tempo, à medida que sobem as temperaturas, vou vendo os espanhóis relaxando demais da conta, abandonando as máscaras (ou botando no queixo, debaixo do nariz, no braço), lotando praias, pisando na minha toalha, esquecendo o distanciamento social e a solidariedade que marcou os dias mais dramáticos do confinamento.

Com o retorno da socialização, a fronteira entre afetuosidade e distanciamento começa a nos confundir.

"Você é a primeira pessoa que eu abraço em três meses!", exclamou um amigo ontem, no nosso primeiro reencontro depois de meses. E olha que ele estava rodeado de umas cinco pessoas na mesa do bar.

Me paralisei por um microssegundo: ops, é verdade, mancada minha ter partido pro abraço? A gente teria que ter se dado o cotovelo, como sói ser a Nova Saudação?

Negócios, bares, cruzeiros, tudo volta a funcionar na Espanha desconfinada. As fronteiras europeias serão levantadas a partir de hoje, e os primeiros turistas são esperados nos próximos dias.

O comércio precisa: no centro de Barcelona, é porta atrás de porta fechada. Neste fim de semana, ainda mais —com a ponte do feriado de San Juan na próxima quarta-feira e a locomoção entre províncias e segundas residências finalmente liberada após meses de isolamento domiciliar, todo mundo debandou daqui.

Não está tudo igual a antes, evidentemente: nos ambientes fechados, desinfecção obsessiva e distanciamento social viraram norma. Em qualquer sala de espera, auditório ou academia de ginástica, o espaço é sinalizado com vários "xis" em cadeiras ou whatevers intercalados.

O silêncio nesses lugares é solene, e o microefeito Moisés está presente em multiplicados gestos (já perdi a conta das pessoas com quem cruzei na rua que, pra desviar de mim, fazem uma espécie de grande órbita ou dança circular, sabe como?).

As máscaras, novo acessório do verão, começam a aparecer nas ruas com estampas de tigrinho e neon, nos mais diversos materiais e formatos. As infantis são as mais criativas. Outro dia tinha até promoção em um jornal tipo leve-a-edição-de-domingo-e-ganhe-uma-máscara-superlegal-pro-seu-filho.

O ciudadano tem usado cada vez menos a máscara na rua, sufocado pelo calor e os materiais ainda não muito respiráveis das ditas, mas segue majoritariamente cumprindo seu uso obrigatório nos transportes públicos, centros de saúde e hospitais.

Já nem sei quanta gente conheci nos últimos tempos cuja cara nunca vi.

Entre as principais preocupações pós-confinamento está a questão das escolas, que voltam à ativa em todo o país de maneira mais presencial do que o plano original.

Para alguns especialistas, a atitude é temerária e precipitada. Um estudo recém-divulgado da Universidade de Granada prenuncia um segundo surto de contágios neste ano e argumenta que as escolas serão um dos grandes focos de expansão de casos.

Segundo essa investigação, uma única turma "estável" de 20 crianças de escola primária poderia envolver uma rede de contatos de até 800 pessoas em dois dias.

O verão, como sabemos, possivelmente facilita a debandada do vírus. Estamos vivendo a estação mais outdoors do ano, aproveitando parques, praias e terraços de bares e restaurantes, que aqui são muy numerosos.

O problema maior dos contextos sociais virá com as estações frias e os espaços fechados, onde o índice de contágios pode ser até 20 vezes superior do que ao ar livre.

Um dos epidemiologistas-estrela-polêmicos da crise espanhola, o catalão Oriol Mitjà alerta para a necessidade de nos prepararmos para esse segundo surto depois do verão.

Como outros, crê que poderá ser necessário um novo confinamento, ou pelo menos "estratégias de isolamento intermitente" por diferentes regiões.

"Seguramente no outono teremos outra vez o vírus", afirmou a um jornal local. E repetiu uma perspectiva também ecoada por outros especialistas: o segundo surto pode ser ainda mais grave, no sentido de que sua curva poderia estender-se mais do que os dois a três meses da primeira onda.

"A mensagem é clara, óbvia e cristalina: o vírus segue presente."

Quanto a esse singelo e longevo diário, quero agradecer as muitas mensagens recebidas. Quanta gente de corazón gigante. Vocês não sabem os litros de lágrimas, estou seca e cansada.

Agora é hora de dizer adeus, so long, até breve. Terminar pra poder recomeçar. Favorecer o eterno movimento dos astros e dos serezinhos falíveis e maravilhosos que somos. Vamos sair de mais essa. Juntos.

Lembrei de uma anotação do meu diário, quando estava vivendo no Camboja, seis anos atrás, em uma ONG rural, rodeada de arrozais e crianças.

"Hoje, no bureau aqui no distante, longínquo, talvez mais-perto-que-nada Camboja, um passarinho ficou preso. Batia nas janelas fechadas, procurava ar, não conseguia escapar. Eu abria os vidros, as portas, eu o chamava, ele não sentia o vento nas asas; com o bico entreaberto, talvez de cansaço, pousava sobre as gigantescas pilhas de papel empoeirado, em cima dos armários de madeira vermelha meio empenados, sobre as mesas de escritório. Eu chorei, chorei….

Voltei agora e ele saiu. Sumiu………."

Grande abraço e cuidem-se muito,

Su

Imagem de "Jewel", novo videoclipe de King Lola (projeto solo de Susana Bragatto) com estreia prevista para final de julho
Imagem de "Jewel", novo videoclipe de King Lola (projeto solo de Susana Bragatto) com estreia prevista para final de julho - Isa Carmona/Divulgação


Pra quem quiser seguir acompanhando, vou adorar vê-los no meu blog e também receber mensagens com suas histórias pessoais de quarentenas: subragatto@gmail.com.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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