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Diário de confinamento: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'

Pode ser que algum dia eu tenha vacilado; que atire a primeira pedra o asséptico dos assépticos

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Barcelona

Dia #87 – Segunda, 8 de junho. Cena: volume de máscaras e luvas descartáveis sextuplicou desde o início da pandemia na Catalunha.

3,1 milhões de vidas. Essa é a cifra de mortes que podem ter sido poupadas em toda a Europa graças às medidas de confinamento e segurança sanitária adotadas nos últimos três meses, segundo um estudo do Imperial College de Londres publicado nesta segunda na revista Nature.

Na Espanha, um dos 11 países analisados, o "lockdown" pode ter evitado a morte de 450 mil pessoas. A taxa de habitantes já contaminados/imunizados no país é a segunda maior da lista, com 5,5% da população, só atrás da Bélgica, com 8%.

Investigações sobre o impacto das "intervenções não farmacológicas" (NPI, da sigla em inglês), como o distanciamento social, o fechamento de escolas e negócios e o isolamento domiciliar, são a tendência dessa pós-crise, já de olho na eventualidade de um segundo surto, com consequente necessidade de atuação em diversas frentes.

Uma mulher, com cabelos curtos e grisalhos, segura nos braços pacotes azuis. Atrás dela há um quadro de Maria com o Jesus no colo, após a crucificação
Voluntária carrega pacotes de alimentos na Igreja de Santa Anna, em Barcelona, antes de distribuí-los a pessoas com dificuldades financeiras - Nacho Doce - 2.jun.20/ Reuters

As macromedidas fazem sentido. No meu micromundo, ainda me questiono: onde, de quem e quando cazzus eu peguei coronavírus, se segui a quarentena à risca e mal saí de casa para ir ao mercado, sempre paramentada com máscara, luvas e álcool em gel e buscando manter as distâncias de manual?

Tenho ouvido muito essa pergunta desde que recebi o diagnóstico de Covid-19, dias atrás, e entrei em uma nova quarentena. Tanto, que me peguei fazendo uma retrospectiva pessoal.

Ao longo dos últimos meses e até a data do meu teste PCR positivo, vi pouquíssimas pessoas —basicamente, as do meu convívio diário, por sua vez também quarentenadas, meu namorado (que, por sua vez, havia visto outras pessoas, e agora se encontra isolado de novo em casa, preventivamente) e meu médico— com máscaras e de longe.

Nas salas de espera, sentei nos bancos assinalados, com separação de 2 metros entre eles. No transporte público, idem, seguindo o distanciamento obrigatório.

Em todos os supermercados e quitandas, sequer poderia ter entrado sem pôr as luvas ou bolsas plásticas oferecidas para cobrir as mãos. Máscaras: siempre.

Em algumas ocasiões a partir do início do desconfinamento, no começo de maio, peguei a bicicleta do serviço público de Barcelona. E aí pequei: talvez tenha levado a mão à cara depois de tocar um guidão contaminado sem me dar conta.

Ao trazer as compras do mercado para casa, buscava desinfectar tudo e sempre lavava as mãos antes e depois. Quarenta segundos, todas as manobras ensinadas em 104.815.789 tutoriais etc.

A roupa para sair estava sempre à porta. Os sapatos também. Mas pode ser que algum dia eu tenha vacilado. Que atire a primeira pedra o asséptico dos assépticos.

Alguém coronado pode ter lambido a melancia que eu trouxe pra casa. Ou ter tossido sobre o contêiner de lixo reciclável dois segundos antes de eu me aproximar pra deixar o meu.

Meu namorado pode ter pego o vírus de um amigo, que por sua vez segue circulando por aí, sem saber que está contaminado e contaminando.

Toda a ginástica e lencinhos descartáveis utilizados para puxar portas e maçanetas de elevadores e banheiros de consultórios —o vírus, seja como for, firulou num paranauê, superou capas de látex e filtros e desinfetantes e me deu um strike.

Mergulho nesses detalhes porque, moral da história: todo cuidado é pouco —e, inclusive, pode não ser suficiente. O vírus está em toda parte; evitá-lo a todo custo, já sabemos, não é exatamente a questão.

Acontece que eu não apresento sintomas e não teria descoberto que tenho o vírus se não fosse por um teste apenas rotineiro, feito sem suspeitas prévias; poderia estar circulando por aí, como várias outras pessoas positivas agora mesmo.

Sobretudo, poderia transmitir o vírus a uma pessoa debilitada ou idosa, e nunca saber que contribuí, indiretamente, para o sofrimento alheio, tão pouco alheio neste momento.

Segundo o ministério da Saúde, 40% dos positivos identificados na Espanha na última semana são assintomáticos —como eu.

Se puderem: Fiquem.Em.Casa.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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