EUA insistem em presença chinesa, e acordo nuclear com a Rússia fica distante

Novo Start, que limita o número de ogivas atômicas das potências, vai expirar em 2021

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São Paulo

O Novo Start, último tratado de limitação de armas nucleares vigente, está mais perto do fim.

As conversas entre Estados Unidos e Rússia sobre a extensão por mais cinco anos do acordo, que expira em 5 de fevereiro de 2021, não resolveram o principal impasse, imposto por Washington: a presença da China na mesa de negociações.

Soldado limpa veículo lançador de míssil balístico intercontinental em ensaio para desfile militar que vai celebrar os 75 anos da vitória na Segunda Guerra Mundial, na quarta (24) em Moscou
Soldado limpa veículo lançador de míssil balístico intercontinental em ensaio para desfile militar que vai celebrar os 75 anos da vitória na Segunda Guerra Mundial, na quarta (24) em Moscou - Maxim Chemetov - 20.jun.20/Reuters

Por dois dias, o enviado de Donald Trump para controle de armas, Marshall Billingslea, discutiu o assunto com o vice-chanceler russo, Serguei Riabkov, em Viena.

À imprensa nesta terça (23) eles anunciaram que as negociações continuarão em julho ou agosto, mas Billingslea explicitou o beco sem saída ao dizer que Washington faz questão de que Pequim esteja no novo acordo.

"Simplesmente perpetuar uma construção da Guerra Fria, de controle bilateral de armas nucleares num mundo com rápida proliferação e que tem um terceiro país correndo rumo à paridade, não faz mais sentido", disse o americano.

O russo afirmou que a ideia "não é realista" e voltou a propor um novo tratado maior, que inclua as duas potências nucleares ocidentais com arsenais semelhantes ao chinês, França e Reino Unido.

Billingslea disse que não havia ainda consenso sobre o arranjo proposto, mas o fato é que tudo caminha para que o Novo Start expire, abrindo a possibilidade de uma nova era de corrida armamentista nuclear.

A lógica americana faz parte do conjunto de táticas de pressão que a gestão Trump adotou sobre a China desde 2017, apelidada de Guerra Fria 2.0.

O enviado americano Billingslea durante entrevista após as conversas sobre o Novo Start, em Viena
O enviado americano Billingslea durante entrevista após as conversas sobre o Novo Start, em Viena - Leonhard Foeter/Reuters

Os países, as duas maiores economias do mundo, duelam principalmente na economia, mas cada vez mais em termos geopolíticos —pandemia da Covid-19, autonomia de Hong Kong, controle do mar do Sul da China e, agora, armas nucleares são pontos recentes de atrito.

O que Washington quer é tentar barrar a pretensão declarada de nacionalistas chineses de ver seu arsenal nuclear passar das 320 ogivas atuais para algo próximo das 1.750 operacionais nas mãos americanas.

Isso pode vir a acontecer, mas não faz parte da doutrina nuclear chinesa hoje, que visa apenas ter uma resposta crível de retaliação em caso de ser atacada, ante regras de operação bem mais amplas de americanos e russo.

Tanto é assim que suas bombas não são de pronto uso: ficam separadas de mísseis e de bases de bombardeiros em tempos de paz, enquanto os rivais nucleares as têm prontas para combate. Mas isso pode mudar.

A disparidade é, inclusive, o argumento central de Pequim para não participar das negociações. Na segunda (22), Billingslea provocou os chineses ao colocar bandeirinhas do país sobre a mesa de conversas, para evidenciar sua ausência.

Houve troca de farpas via Twitter, e os constrangidos russos, aliados usuais da China em questões diplomáticas, pediram para que os estandartes fossem removidos.

Do ponto de vista de Moscou, rival derrotada em sua encarnação como União Soviética (1917-1991) pelos EUA na primeira Guerra Fria, a discussão é ofensiva por colocar seu poderoso arsenal de 1.572 ogivas operacionais como um detalhe na briga Washington-Pequim.

A alternativa encontrada pelo Kremlin, de envolver aliados americanos, também tende a não surtir efeito.

Os franceses têm 290 bombas, e os britânicos, 195. Ambos os países não têm planos de expansão de seu arsenal ou pretensões estratégicas que não sejam de garantir uma defesa mínima no teatro europeu de operações.

O Novo Start (que vem da sigla inglesa para Tratado de Redução de Armas Estratégicas) é o descendente direto do primeiro acordo do tipo, entre soviéticos e americanos, em 1972.

Foi assinado em 2010, buscando limitar o número de bombas a 1.550 de cada lado, além de 700 meios militares para empregá-las (aviões, mísseis e submarinos).

Ao fim da Guerra Fria, o mundo tinha cerca de 70 mil ogivas nucleares, a maioria absoluta nas mãos de Washington e Moscou. Agora são 13,4 mil, segundo a Federação dos Cientistas Americanos, 91% delas com os mesmos donos —mas há novos atores no palco desde então, como Paquistão e Coreia do Norte.

Nem Rússia nem EUA são inocentes no jogo. Putin já havia revisado sua política nuclear em 2010, ampliando cenários do uso nuclear defensivo, e quando o Ocidente prometeu um escudo antimíssil na Europa, passou a investir numa nova geração de armas —da qual mísseis hipersônicos são as estrelas.

Mas enquanto o russo defende o uso de instrumentos de controle, Trump o acusa de ser dissimulado e promove o desmantelamento do sistema internacional vigente.

Deixou assim um importante acordo sobre mísseis instalados na Europa e suspendeu os voos mútuos de reconhecimento de áreas militares com Moscou.

Após revisar sua doutrina nuclear em 2018 e ampliar a possibilidade do uso da bomba, os EUA tornaram operacional um novo modelo de baixa potência —que poderia ser usado contra países próximos da Rússia, como Irã ou Coreia do Norte, mas que Moscou considera a porta para uma escalada apocalíptica.

Com tudo isso, a predição sombria feita por um dos maiores especialistas mundiais em desarmamento, o brasileiro Sérgio Duarte, segue válida: a possibilidade de um conflito nuclear é maior hoje do que na Guerra Fria.

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