Os antigos faraós egípcios consideravam a inscrição de seus nomes em pedra, os chamados cartuchos, essencial para garantir a eternidade. Tenha seu nome repetido, viva para sempre.
As ruínas em Luxor ou Karnak dão exemplos múltiplos de como governantes às vezes tentavam apagar a memória do antecessor: raspando cartuchos e destruindo estátuas. O caso mais clássico talvez seja o de Akhenaton, que reinou por volta de 1352-1335 antes de Cristo.
Impopular por ter instituído o primeiro monoteísmo no país, eliminando 2.000 deuses e castas de sacerdotes no processo, Akhenaton sofreu uma enorme campanha de cancelamento, para usar um termo moderno, após sua morte.
Nesta terça (9), o prefeito de Londres, Sadiq Khan, anunciou que revisará a conveniência de se ter estátuas ou nomes de logradouros públicos em homenagem a pessoas ligadas à escravidão.
Foi uma resposta rápida ao crescimento dos protestos contra racismo, que eclodiram em vários pontos do mundo na esteira da morte do segurança negro George Floyd (1973-2020) sob o joelho asfixiante de um policial branco em Minneapolis.
Khan se adiantou ao inevitável. No domingo (7), manifestantes atacaram estátuas por todo o Reino Unido. O caso mais famoso foi a derrubada e o afundamento num rio da efígie de Edward Colston (1636-1721), um mercador de escravos de Bristol.
Ele, que dificilmente seria defendido em um fórum moderno, não foi o único. Em Londres, a estátua do premiê Winston Churchill (1874-1965) ganhou um adendo pichado: "Era um racista".
Em entrevista à rede Sky News, Khan disse que não iria tão longe a ponto de classificar grandes figuras da história, como Churchill ou o líder indiano Mahatma Gandhi (1869-1948), como racistas —eles o foram, mas também desempenharam papéis enormes e importantes.
O prefeito não está sozinho. A decisão sobre considerar quem merece ser lembrado e quem não merece transcende questões raciais, um claro crime contra a humanidade, e, em última análise, sempre é política.
Nos EUA, onde a atual onda revisionista começou, discute-se há anos a retirada de estátuas de generais da Confederação, o lado derrotado na guerra civil de 1861-65, associados ao Sul escravocrata.
Um monumento que será desvelado neste ano em homenagem às sufragistas americanas que lutaram pelo direito a voto, no Central Park de Nova York, teve de ser redesenhado para incluir uma ativista negra.
Inicialmente, seriam estátuas das duas líderes mais famosas do movimento, apontadas por historiadores como elitistas e racistas.
Se a escravidão é central na psiquê política americana, na Europa o tema é agudizado devido ao passado colonialista. A questão da devolução de artefatos retirados de antigas possessões na Ásia e na África tem provocado revisão de exposições em museus e fechamento de coleções.
Na Bélgica, o monstruoso legado da exploração do Congo garantiu um capítulo à parte nas manifestações deste ano ao rei Leopoldo 2˚ (1835-1909) e suas estátuas.
Na tarde desta terça, manifestantes foram à Universidade de Oxford, no mesmo Reino Unido, pedir a retirada da estátua de Cecil Rhodes, que criou um império de extração de diamantes na África do Sul e é considerado um dos pais do antigo apartheid que reinava no país.
Oxford, onde ele estudou, já havia tido esse debate em 2016, após a Universidade da Cidade do Cabo se livrar da estátua de Rhodes.
Os britânicos concluíram que seria mais válido instruir estudantes sobre o papel das pessoas que por lá haviam passado —os feitos e os desmandos— do que simplesmente apagá-las.
Historiadores menos apaixonados tendem a adotar essa solução, embora haja sempre o argumento "lacrador": se fosse assim, por que destruíram as estátuas de Adolf Hitler (1889-1945), o símbolo máximo do mal no Ocidente?
A resposta rápida é porque ele perdeu a Segunda Guerra Mundial (1939-45). Mas mesmo isso é sujeito a conveniências: um dos grandes vencedores, o também ditador e sanguinário Josef Stálin (1878-1953), viu suas estátuas desaparecerem da União Soviética à medida que o regime revelava os horrores cometidos.
Assim, ainda há várias ruas Stálin e pelo menos uma grande estátua em sua homenagem em sua natal Geórgia, mas não se vê nada disso em Moscou —exceto em seu túmulo e no Parque das Esculturas, que abriga diversas efígies soviéticas ao sul do Kremlin.
"Em compensação, ainda há um número considerável de Lênins por aqui. Se ele foi poupado, não foi por falta de violência em seu governo", recorda o historiador Nikolai Sokolov, de Iekaterinburgo, em referência ao fundador da União Soviética, Vladimir Lênin (1870-1924).
O Brasil passou por esse debate recentemente. Logradouros em São Paulo que homenageavam figuras da ditadura militar foram renomeados, e o Minhocão deixou de ser elevado Arthur da Costa e Silva (1899-1969) para homenagear o derrubado João Goulart (1919-1976).
A discussão sobre a homenagem a racistas por ora só chegou à internet brasileira, com um alvo fácil: o bandeirante Borba Gato (1649-1718), cuja horrenda estátua na avenida Santo Amaro assombra paulistanos há anos.
Noves fora questões estéticas, há questões identitárias envolvidas. A política de São Paulo sempre promoveu a imagem do bandeirante como desbravador destemido de interiores, enquanto revisionistas só os viam como genocidas aproveitadores de índios e negros escravos.
A historiografia das conquistas portuguesas no século 16 deixa claro que havia brutalidade e engenho em iguais medidas, que se refletiram no processo colonizatório nos anos a seguir.
Há também uma questão subjacente. Não é descabido associar os exageros do politicamente correto, em especial em sua vertente norte-americana dos anos 1990, à ascensão do reacionarismo cultural que deságua na eleição de Donald Trump, em 2017.
O embate se espraia e amplifica a discussão atual, com discípulos de Trump como Jair Bolsonaro dizendo que estão em guerra contra o politicamente correto, como o brasileiro fez em seu discurso inaugural em 2019.
Não é uma discussão nova e diz respeito a relações de poder, como o faraó Akhenaton poderia atestar.
De sua parte, restaram a fama de ser pai do famoso Tutancâmon e pouquíssimas estátuas, e a mais tocante delas é na verdade apenas um vestígio: sua mão dada à da mulher, Nefertiti, que flutuam numa sala do Neues Museum de Berlim.
Por sinal, é um dos vários artefatos que o governo no Cairo exige que sejam devolvidos por seus saqueadores imperialistas, demonstrando a perenidade do debate.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.