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Luta pela igualdade ou agenda globalista para dizimar a população mundial?

Movimentos de oposição à ideologia de gênero conseguiram transcender fronteiras

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Juan Daniel Elorza Saravia

É professor e pesquisador da Universidade de Salamanca e doutor em filosofia do Direito pela mesma universidade. Mestre em argumentação jurídica pela Universidade de Alicante. Dedica-se ao direito constitucional e à axiologia sob uma perspectiva ibero-americana. Membro do GIR Derechos y Libertades en la Sociedad Actual.

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Já faz alguns anos que as ruas das principais cidades latino-americanas vêm sendo cenário de grandes manifestações para denunciar e deter um suposto plano macabro que pretende, entre outras coisas, dizimar a população mundial, subverter a natureza humana por meio de mentiras anticientíficas, doutrinar e corromper a infância, acabar com as liberdades civis, destruir a família e desmantelar a dignidade humana.

Trata-se de marchas contra uma agenda globalista autoritária que impõe uma suposta “ideologia de gênero”. O relato sobre tal imposição é capaz de mobilizar pessoas de uma ampla variedade de estratos sociais, e embora não se possa afirmar que todas elas estejam informadas sobre os motivos para que sejam chamadas à rua, é lícito dizer que o fazem por terem um compromisso para com uma cruzada moral pela vida, pela infância e pela família. Essa cruzada precisa ser travada na América Latina, o último baluarte remanescente, porque nas democracias do chamado Primeiro Mundo a batalha já está perdida.

A ampla capacidade de convocação desses movimentos de oposição à ideologia de gênero depende do fato de que suas reivindicações não são políticas, mas sim morais. No entanto, se as contemplarmos com atenção comprovaremos que os artífices de tais marchas são plataformas vinculadas a poderosos lobbies políticos e a organizações religiosas com representação parlamentar.

Diversos desses foros da família, organizações “pró-vida” e coletivos para a defesa dos filhos conseguiram transcender fronteiras; hoje as democracias latino-americanas estão experimentando com a construção de redes transnacionais de mobilização que vão conquistando cotas amplas de poder dentro de seus sistemas nacionais.

Como toda manifestação cidadã, estas também são uma demonstração de força, o que se traduz em votos, nem sempre colocados à disposição de projetos democráticos. Basta recordar de que forma esse discurso foi decisivo para a rejeição do chamado Plebiscito pela Paz na Colômbia, ou para a eleição do presidente Bolsonaro no Brasil.

A composição do grupo que acusa a existência de uma ideologia de gênero é bastante singular. Por sob esse rótulo se encontram tanto os setores mais conservadores da sociedade, próximos à Igreja Católica e às denominações protestantes, quanto os setores mais liberais, que advogam a redução do Estado e que este não interfira nas relações sociais e familiares.

As alianças aqui não são tecidas no contexto de direita/esquerda. Os promotores teóricos desse movimento propagam o discurso virulento, catastrofista e polarizador que tanto agrada às redes sociais. Pastores evangélicos, ultracatólicos militantes ou anarcocapitalistas loquazes, até recentemente desconhecidos, conseguiram grande destaque na mídia por conta de suas acaloradas arengas contra a ideologia de gênero. E como os algoritmos não entendem de justiça, mas sim apenas de cliques, não há hesitação em usar o medo, o exagero, a tergiversação e a manipulação de teorias.

Chama a atenção como funciona o relato de “construção do inimigo” por esses agentes, e sua capacidade de incluir fenômenos muito distintos, e às vezes até incompatíveis, em um grande bloco monolítico ao qual denominam “lobby de gênero”. Nele está incluído tudo que se refira ao feminismo, aos coletivos LGTBIQ+, aos que defendem o controle da natalidade ou a descriminização do aborto, às pessoas que lutam por erradicar a violência machista, e à chamada Nova Esquerda.

Nessa narrativa também são adversários a mídia de massa, as Nações Unidas, os governos que aprovaram leis em favor da igualdade ou da saúde sexual e reprodutiva, ou políticas públicas contra a discriminação e, obviamente, os magnatas George Soros e Bill Gates. O inimigo, assim, é uma grande variedade de coisas que foram batizadas como “ditadura mundial de gênero”. Assim, na lógica da cruzada, toda pessoa que lute contra uma ditadura se vê redimida pelo halo de uma resistência legítima à opressão.

A consequência mais perigosa disso é a grande polarização social que está sendo conseguida por meio de uma versão simplificada da realidade, fácil de digerir por uma pessoa bem intencionada e pouco informada, mas que coloca no mesmo saco fenômenos muito diferentes, demonizando lutas históricas pela justiça social. De acordo com essa versão, reconhecer os direitos das minorias equivale a desconsiderar os das maiorias, já que a simples igualdade formal perante a lei é vista como suficiente, e as vozes que defendem a igualdade real e efetiva não mais que cânticos de doutrinação e engenharia social.

Esse cenário de polarização toma a forma de uma autêntica guerra cultural. Mas é preciso reconhecer que, em boa parte, essa guerra foi declarada como reação ao surgimento, no seio do feminismo, de teorias de desconstrução de gênero que entronizam como pensamento central a inconsistente dicotomia entre natureza e cultura, e convertem a política da sexualidade na política das identidades de gênero, radicalizando e tirando de foco as posturas dos movimentos sociais pela igualdade.

Esse ativismo se decantou em uma atitude mais beligerante que dissidente, desafiando, com suas formas, as forças mais reacionárias de nossas sociedades. O desafio foi aceito, e a heresia foi declarada; o adormecido despertou. Hoje, as teses filosóficas sobre o sistema sexo/gênero são tiradas de contexto e adulteradas para açular o medo diante da decomposição social e antropológica e, paradoxalmente, esse clima de confronto coloca em risco as conquistas históricas justas do movimento feminista.

Aqueles que entram em combate para defender tais conquistas costumam recorrer a uma estratégia discursiva equivocada: limitam-se a negar que exista uma “ideologia de gênero” e a afirmar que aquilo que subscrevem é uma “perspectiva de gênero”. Essa estratégia significa entrar no jogo da polarização e só consegue que um debate social tão importante termine relegado ao plano puramente terminológico.

Pois ainda que aquele rótulo tenha sido cunhado para caricaturar o inimigo, desmontá-lo exige apresentar uma definição de “ideologia”; mas a atual distensão conceitual do termo faz com que a defesa termine por ser necessariamente ideológica. E o paradoxo resultante é que tanto os ultraconservadores quanto os ultraliberais, ambos grandes adversários de Marx, terminem acolhendo exatamente a noção marxista de ideologia como “falsa consciência” para menosprezar o inimigo. Ainda assim, a generalização desse termo emotivo pode ser aproveitada para despojá-lo de suas conotações pejorativas e polarizadoras.

No meu entender, os movimentos pela igualdade bem poderiam se apropriar da expressão Ideologia de gênero e ressignificá-la, como fizeram na década de 1990 com o terno “queer”. Do contrário, continuarão entrelaçados em batalhas dialéticas infrutíferas, e perdendo oportunidades de ouro para explicar às sociedades latino-americanas que a defesa da igualdade e da não discriminação é algo valioso em si. Enquanto isso não tiver sucesso, a narrativa apocalíptica sobre uma agenda obscura para dizimar a população mundial continuará ganhando adeptos que colocarão seus votos a serviço dos fins que seus mobilizadores definam.

Tradução de Paulo Migliacci

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