Na pandemia, máscaras com palavras de ordem fazem as vezes de cartazes em protestos

Manifestações antirracistas após morte de George Floyd trouxeram novas práticas aos ativistas

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São Paulo

Na eclosão dos protestos antirracismo nos Estados Unidos, a ativista Trinice McNally estreou uma atividade em sua militância: organizar a entrega de máscaras aos manifestantes. A educadora tem participado dos atos do distrito de Columbia por meio do Movimento por Vidas Negras.

Na pandemia, as máscaras que invadiram o cotidiano da população em passeios, idas ao mercado e ambientes de trabalho estão também em manifestações políticas, nas quais se tornaram uma espécie de cartaz para palavras de ordem.

A morte de George Floyd, que mais uma vez escancarou o racismo nos Estados Unidos, foi o estopim para dias seguidos de protestos pelo mundo.

O americano negro foi assassinado no fim de maio após um policial algemá-lo e ajoelhar sobre seu pescoço contra o chão durante quase nove minutos, enquanto Floyd repetia que não conseguia respirar.

No dia 12 de junho, em Atlanta, a morte de outro homem negro pela polícia gerou novos atos.

Manifestantes pelo mundo exibem mensagens em suas máscaras, item básico no combate ao coronavírus - AFP e Reuters

As máscaras distribuídas por McNally estampavam duas mensagens: "Stop killing black people" (parem de matar a população negra) e "defund the police" —descapitalize a polícia, um movimento que questiona a verba destinada às forças de segurança dos EUA.

A ativista conta que identifica aqueles que estão desprotegidos, oferece o acessório e, de quebra, engaja-os na sua causa. "Eu não encontrei ninguém que não tenha agradecido e colocado", afirma.

A peça já havia sido usada massivamente em outros protestos mesmo antes da pandemia. No ano passado, ela se tornou um símbolo dos manifestantes de Hong Kong, que foram às ruas contra uma lei que facilitava a extradição de honcongueses para a China continental.

"Nós saíamos às ruas com máscaras, mas elas serviam para nos proteger de gás e bombas jogadas pela polícia", explica o ativista Tam Tak-Chi. Muitas delas eram antitóxicas, não cirúrgicas. E não funcionavam como cartazes.

Em audiência no Congresso dos EUA no último dia 10, o irmão de George Floyd, Philonise, estampou três frases na máscara que vestia: "justiça para Floyd", "vidas negras importam" e "eu não consigo respirar".

Philonise Floyd, irmão de George Floyd, durante audiência no Congresso dos Estados Unidos
Philonise Floyd, irmão de George Floyd, durante audiência no Congresso dos Estados Unidos - Erin Schaff - 11.jun.20/Xinhua

Apesar do teor político, a ativista McNally diz que o objetivo imediato da distribuição continua sendo o mais óbvio: proteger os manifestantes do novo coronavírus. "Não queremos colocar a vida dessas pessoas em mais perigo ainda."

Ela lembra que as comunidades negras e de baixa renda concentram casos e mortes provocados por coronavírus de maneira desproporcional nos Estados Unidos. Os negros, mais pobres que os brancos no país, têm menos acesso a tratamentos médicos e mais chances de estarem nos grupos de risco.

As organizações de que McNally participa estão promovendo treinamentos e distribuindo kits para tentar minimizar os riscos. Levar álcool em gel e tentar manter a distância são algumas das recomendações que, como ela mesma reconhece, não estão sendo seguidas à risca.

"Mas eu vi mais pessoas usando máscaras do que não usando", afirma.

No Brasil, a estratégia foi absorvida tanto por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) quanto por membros de movimentos de oposição que começaram a sair às ruas nas últimas semanas.

"As pessoas estão fazendo máscaras de diferentes modelos, estampas, de clubes de futebol. E nós estamos fazendo com as nossas palavras de ordem", afirma Atnágoras Lopes.

Ele faz parte da Central Sindical Conlutas, que nas últimas manifestações contra o governo distribuiu máscaras em que se lia "Fora Bolsonaro e Mourão" acima do logo da entidade. Só em São Paulo, eles já fizeram mil exemplares.

No ato, elas serviram para agitação. "'Olha a máscara do Fora Bolsonaro', nós dizíamos, e as pessoas iam pegar", afirma Lopes. "Usar a máscara como símbolo de que é importante se proteger do vírus e ao mesmo tempo passar a mensagem de protesto é bastante útil."

Do outro lado, no fim de maio, a deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) acumulou mais uma polêmica ao usar uma máscara em que se lia "e daí?" durante sessão plenária da Casa.

A frase havia sido dita por Bolsonaro dias antes, ao ser questionado sobre o número de mortos pela pandemia.

No Twitter, ela disse que a máscara fora doação de um apoiador. A expressão, segundo ela, fazia referência a um vídeo que dizia frases como: "e daí que cidadãos de bem estejam apanhando da polícia e guardas municipais pelo simples exercício de seu direito constitucional de ir e vir?".

O presidente passou a usar o acessório no meio de março. Ainda assim, não atende a critérios objetivos. Nas manifestações a que comparece, onde há aglomerações, não é visto com o item de proteção.

Na segunda-feira (22), uma decisão da 9ª Vara Federal Cível de Brasília determinou a Bolsonaro a obrigatoriedade de utilizar a máscara de proteção em espaços públicos e estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços no Distrito Federal.

No imbróglio com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que o acusa de tentar interferir na Polícia Federal, o presidente apareceu em frente ao Palácio da Alvorada vestindo uma máscara com o logo da entidade.

"Gostaram da máscara da Polícia Federal? A PF agora é do Brasil, hein? Como sempre, a PF foi independente, vai continuar independente e vai continuar nos orgulhando do seu trabalho", disse a jornalistas.

A atitude de Bolsonaro não foi inspirada no presidente dos EUA Donald Trump. O republicano não tem seguido a recomendação de especialistas e, no final de maio, afirmou que não usou a máscara em visita a uma fabrica para "não dar esse prazer à mídia".

Outros líderes de direita no mundo seguem a mesma cartilha. Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, tampouco é visto se protegendo, mesmo após ter contraído o vírus.

Para Jennifer Berdahl, professora de psicologia social da Universidade da Columbia Britânica, a máscara não é apenas mais uma plataforma de protesto.

O não uso da peça também é visto pela pesquisadora como uma afronta. "Foi uma reação da direita, em grande parte alimentada por pessoas como Trump, que estavam zombando das preocupações com o coronavírus", afirma.

Berdahl usa um de seus temas de estudo para explicar o fenômeno: as relações de gênero. Para a acadêmica, Trump deu o exemplo de que "homens de verdade não usam máscaras".

Ela identificou alguns pontos da "masculinidade tóxica", como denominou, que podem se relacionar a esse comportamento: não demonstrar fraqueza, maior facilidade em quebrar regras e não se preocupar tanto com os outros.

"Usar uma máscara significa admitir que eu posso ficar doente, que estou seguindo as regras e que estou ouvindo os cientistas", explica.

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