Descrição de chapéu The New York Times

Polícia abandona delegacia, e manifestantes criam zona autônoma em Seattle

Ativistas reverteram barricadas para proteger ruas liberadas e tomaram posse de vários quarteirões

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Mike Baker
Seattle | The New York Times

Nas ruas próximas a uma delegacia de polícia no bairro de Capitol Hill, em Seattle, manifestantes e policiais passaram uma semana em um ciclo de enfrentamentos que se repetiam todas as noites e às vezes terminavam entre nuvens de gás lacrimogêneo.

Mas nesta semana, em meio à reação crescente contra as táticas que utilizou para dispersar ativistas na esteira da morte de George Floyd, em Minneapolis, o Departamento de Polícia de Seattle ofereceu uma concessão: os policiais abandonariam a delegacia, fechariam as janelas com tábuas de madeira e dariam rédea livre aos manifestantes do lado de fora.

diversas pessoas estão em círculo e levantam um de seus braços, de punho fechado
Manifestantes se reúnem no bairro de Capitol Hill, em Seattle, nos EUA, que se tornou uma 'zona autônoma' sem policiamento - Ruth Fremson - 10.jun.20 /The New York Times

Em um bairro que é o coração da arte e cultura da cidade —e que está em risco hoje em dia diante da gentrificação trazida pela riqueza crescente do setor tech—, manifestantes aproveitaram o momento.

Eles reverteram as barricadas para proteger as ruas liberadas e tomaram posse de vários quarteirões, numa área que agora é conhecida como “Zona Autônoma de Capitol Hill”.

“Este espaço agora é propriedade do povo de Seattle”, diz uma faixa estendida na entrada da delegacia de polícia, agora vazia. A área inteira agora virou uma zona de justiça racial —e, dependendo do manifestante com quem se conversa, talvez algo mais também.

O que emergiu disso é um experimento de vida sem polícia, algo que é em parte festival de rua, em parte comunidade. Centenas de pessoas vêm se reunindo para ouvir discursos, recitais de poesia e música.

Na noite da terça-feira (9), dezenas de pessoas ficaram sentadas num cruzamento para assistir a “A 13ª Emenda”, documentário de Ava DuVernay sobre o impacto do sistema de justiça criminal sobre os afro-americanos. Na quarta-feira, crianças fizeram desenhos com giz no meio da rua.

Uma quadra tinha uma área reservada para fumantes. Outro, uma estação de paramédicos. Na “No Cop Co-op” (cooperativa sem policiais), as pessoas podiam buscar uma água com gás LaCroix gratuita ou um lanche.

Não era aceito nenhum pagamento em moeda, mas, do outro lado da rua, em um gesto de reconhecimento ao capitalismo, um carrinho vendia cachorros quentes por US$ 6 (R$ 29).

imagem da esquina de uma rua, vista de cima, apenas algumas pessoas andam pela faixa de pedestres e pela rua. há proteções de trânsito laranja sobre a faixa de pedestres
Barricada montada no bairro de Capitol Hill, em Seattle, define o território da 'zona autônoma' estabelecida por manifestantes - Ruth Fremson - 10.jun.20/The New York Times

Na noite da quarta-feira (10), o presidente Donald Trump tentou descrever as cenas vistas em Seattle como algo mais sinistro. Pediu que líderes governamentais reprimissem os manifestantes, declarando no Twitter que “terroristas domésticos tomaram conta de Seattle”.

“Retome sua cidade AGORA”, escreveu Trump em um tuíte dirigido à prefeira Jenny Durkan e ao governador Jay Insleee. “Se vocês não o fizerem, eu farei. Isto não é brincadeira.”

Durkan respondeu com um tuite próprio: “Garanta a segurança de nós todos. Volte a seu bunker.”

Cada vez mais, a zona de protesto vem funcionando com a aprovação tácita da cidade. Harold Scoggins, chefe do corpo de bombeiros de Seattle, esteve no local na quarta-feira, batendo papo com manifestantes, ajudando a fazer uma ligação para o departamento de polícia e garantindo que a área tivesse sanitários portáteis e serviços de saneamento.

“Não tenho ideia de onde estamos indo”, disse Scoggins em entrevista. “Estamos trabalhando passo a passo para descobrir como construir um relacionamento, para construir confiança em coisas pequenas, para que juntos possamos descobrir a resposta.”

Os manifestantes também vêm tentando decifrá-la, com várias facções apresentando prioridades diferentes. Uma lista de três reivindicações foi colada a um muro em posição de destaque: primeiro, “desfinanciar” o departamento de polícia; dois, financiar a saúde comunitária; e três, anular todas as acusações criminais contra manifestantes.

Mas numa cerca vizinha, havia uma lista de cinco reivindicações. E online havia uma lista com 130.

A morte de George Floyd em Minneapolis direcionou a maior parte da energia nas ruas para o objetivo de acabar com a violência policial e a injustiça racial, mas algumas das pessoas reunidas aqui nos últimos dias defendem um foco mais amplo.

Algumas das mensagens espelham o movimento Occupy, de 2011, e parecem atacar a América corporativa por sua contribuição para as desigualdades sociais.

“Quanto mais incentivamos e focamos a questão do racismo, mais deixamos de focar o fato de que esta é uma guerra de classes”, disse um manifestante de 28 anos que se descreve como anarquista e se identificou apenas pelo primeiro nome, Fredrix.

Na noite de terça-feira, a vereadora Kshama Sawant, filiada ao Partido Socialista Alternativo, liderou manifestantes numa passeata até a sede da prefeitura e promoveu um encontro dentro do prédio em que ela divulgou seu plano de taxar a Amazon, que tem sua sede na cidade.

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Manifestantes fazem assembleia em Capitol Hill, que se tornou uma 'zona autônoma' sem policiamento na cidade de Seattle, nos EUA - Ruth Fremson - 10.jun.20/The New York Times

Mas algumas das pessoas que se mobilizaram em Seattle em torno do racismo e do policiamento começam a temer que essas prioridades mais amplas possam anuviar a pauta em um momento em que avanços cruciais para os afro-americanos pareciam ser possíveis.

“Precisamos enfocar só esta uma coisa primeiro”, opinou Moe’Neyah Dene Holland, 19, ativista do movimento Black Lives Matter. “As outras coisas podem vir a seguir. Porque, honestamente, homens pretos estão morrendo, e é sobre isso que deveríamos estar concentrados.”

A prefeitura se preparou para a possibilidade de as manifestações de rua se prolongarem. Na quarta-feira uma equipe do Departamento de Transportes de Seattle foi à “zona autônoma” com a esperança de remover algumas das barreiras cor de laranja –incluindo uma em que está escrito “República Popular de Capitol Hill”— e substituí-las por floreiras, para conferir um ar de permanência à zona de pedestres.

Mas quando as equipes foram remover as barreiras, alguns manifestantes fizeram objeção. Os operários recuaram, e Rodney Maxie, vice-diretor do departamento de transportes, disse à sua equipe que ela poderia retornar mais tarde, após mais discussões com os manifestantes.

“Isto daqui é um bom treino para o terremoto de 9.0 pontos”, disse ele à sua equipe.

Os manifestantes divergem em suas opiniões sobre quanto tempo a zona autônoma pode durar. Alguns especulavam que o departamento de polícia poderia querer retomar o território.

Outros preveem que as barreiras continuarão onde estão por semanas, até as autoridades estaduais e municipais terem feito o suficiente para atender suas reivindicações.

John Moore, 23, espera ver a zona autônoma ser legalmente reconhecida. No centro de saúde improvisado montado no pátio de um restaurante de tacos, Moore usava uniforme de paramédico e tinha um estetoscópio em volta do pescoço.

A equipe de paramédicos buscava um local mais permanente para dar atendimento, e Moore disse que a equipe tem dezenas de pessoas com qualificações diversas, desde certificações de prestação de ressuscitação cardíaca até experiência médica em um centro de traumatologia de nível 1.

Moore disse que o experimento em um local sem polícia pode funcionar.

“Estamos tentando provar por meio de ações e práticas que não precisamos da polícia e que podemos atender às necessidades da comunidade sem ela”, disse ele.

Tradução de Clara Allain

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