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Nem só de vírus morre a sociedade

Consolidou-se uma prática sistemática de desinformação, especificamente de uma de suas modalidades, as fake news

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Bruno Nathansohn
Latino América 21

Em 16 de abril, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, foi demitido pelo presidente Jair Bolsonaro, e um mês depois Nelson Teich, que havia tomado posse, renunciou ao cargo.

Em meio à gravíssima pandemia do Covid-19, aprofunda-se uma contínua crise política. Uma mudança de envergadura em momento tão crítico revela falta de compreensão sobre a gestão da saúde de um modo geral e sobre os consequentes impactos que essa ação causa na informação direcionada à população.

Aliada à decisão política, ressalta-se a presença constante de desinformação que infesta as redes sociais digitais e que, inclusive, contribuiu para alçar o atual Presidente da República ao Poder Executivo.

Os ex-ministros da Saúde do governo Bolsonaro, Nelson Teich (esq.) e Luiz Henrique Mandetta, cumprimentam-se com os braços durante a cerimônia de posse do primeiro, em abril, em Brasília
Os ex-ministros da Saúde do governo Bolsonaro, Nelson Teich (esq.) e Luiz Henrique Mandetta, durante a cerimônia de posse do primeiro, em abril, em Brasília - Pedro Ladeira - 17.abr.2020/Folhapress

Com a eleição de Donald Trump, em 2017, nos Estados Unidos, forjou-se e consolidou-se até aqui uma prática já existente, porém agora sistemática, de desinformação, especificamente de uma de suas modalidades, as fake news, ou notícias falsas.

Um processo que aponta para diversas mudanças de comportamento, como os movimentos antivacina, o descrédito do sistema democrático e a desqualificação da ciência, com aprofundamento de propostas econômicas neoliberais.

Exemplo marcante de desqualificação da ciência está na demissão do diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão. Na ocasião, o Bolsonaro colocou em dúvida os dados levantados pelo Inpe em relação ao aumento das queimadas na Amazônia. No seu entender, os dados estariam errados, levando a uma imagem negativa do Brasil no exterior.

Também houve os sucessivos ataques da Presidência à Organização Mundial da Saúde (OMS) e às suas recomendações ao isolamento social.

Essa forma de lidar com o campo científico é marcante na estratégia de desinformação da extrema direita, retroalimentando a rejeição de grupos ultraconservadores ao pensamento crítico, à intelectualidade, às instituições de pesquisa e educacionais, como às universidades públicas e à própria razão, de um modo geral.

A agenda do caos parece ser a lógica adotada pela atual conformação do poder no Brasil. Assim foram eleitos Trump e Bolsonaro, que parecem agir em consonância com o estrategista Steve Bannon. A cada crise palaciana ou decisões que geram impacto social, como a reforma da Previdência, gera-se uma cortina de fumaça para abafá-las, por meio de notícias bombásticas, sem embasamento com a realidade.

Steve Bannon ficou conhecido como o estrategista por trás da saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit, através da empresa Cambridge Analytica, que atua na área de consultoria política, apropriando-se indevidamente de dados pessoais digitais, por meio de mineração de dados e análise desses com comunicação estratégica.

Para atingir seus objetivos mais imediatos e trazer seus respectivos países à normalidade frente à atual pandemia (leia-se negação do problema), receitas prontas são anunciadas como cura. Nesse caso, apresenta-se a cloroquina e até a sugestão de que a injeção de desinfetante poderia ser utilizada para o combate ao vírus, conforme declaração do presidente norte-americano.

Ambos geraram severas críticas da comunidade científica por não apresentarem resultados para o combate à doença. No caso brasileiro, mimetiza-se, simplesmente, o que é veiculado pelo mandatário do norte, como provam os discursos e a estética política do governo Bolsonaro, ao desfilar com bandeira dos EUA em atos públicos.

Nesse sentido, a desinformação precisa ser combatida por meio de políticas de informação afinadas aos princípios universais dos direitos humanos, como as leis de acesso (no Brasil, a Lei de Acesso à Informação), que possibilitam ao cidadão, em tese, obter informações sobre todo o aparato do Estado e as funções de suas agências, órgãos e funcionalismo, excetuando-se aquelas de caráter sigiloso, referentes à segurança nacional.

Para tanto, torna-se fundamental valorizar o trabalho de agências públicas reconhecidamente confiáveis que produzem dados e geram conhecimento, como, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pelo perfil demográfico brasileiro, e a Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), responsável pela organização e desenvolvimento de pesquisas na área de saúde pública, dentre outras relacionadas à tomada de decisão em políticas públicas.

Outras fontes de informação devem ser mais bem disseminadas ao público em geral, como o Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), que possui em sua estrutura a base de dados da rede Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs).

No Brasil, a Bireme possui parceria com as Bibliotecas Virtuais em Saúde, da Fiocruz. Grande parte do sucesso obtido pela pesquisa científica brasileira em saúde advém da capacidade de coordenação entre a Bireme e suas congêneres nos países que fazem parte da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) / Organização Mundial da Saúde (OMS).

Buscar fontes de informação confiáveis, no entanto, depende de instrução e aprendizagem contínua, além da educação escolar formal. Depende também de políticas públicas de informação por uma maior democracia na comunicação, com maiores investimentos em conteúdo de qualidade e acessibilidade universal. A consciência adquirida sobre a importância da informação e da comunicação para a conquista de cidadania passa pela qualificação das fontes e dos usuários/cidadãos.

Fontes de informação confiáveis necessitam, por sua vez, da potencialização de arquivos, bibliotecas e centros de informação como loci democráticos, abertos e voltados ao acesso social.

Informação e conhecimento são bens públicos capazes de transformar realidades sociais. Num continente com tantas iniquidades e injustiças, como o latino-americano, torna-se necessário traçar diretrizes para que a informação chegue à coletividade e que essa coletividade seja capaz de compreender o significado do que é transmitido.

Somente o reconhecimento das pessoas como parte de uma coletividade, que depende invariavelmente do compartilhamento para viver e de agentes do Estado capazes de tomar decisões em prol do bem comum, pode minimizar a desinformação, o que inclui as fake news, levando a bom termo a produção científica e seus resultados, com o mínimo de desconfiança ou rejeição aos avanços até aqui obtidos.

A desinformação pode matar tanto quanto a própria pandemia, retroalimentando a ignorância.

Bruno Nathansohn tem doutorado pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), em convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e especialização em Gestão Eletrônica de Documentos (GED) pela Faculdade Unyleya.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

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