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A pandemia e a indolência econômica de López Obrador

Com as realizações atuais do presidente, economia mexicana se contrairá em 9%, de acordo com a Cepal

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José Ramón López Rubí Calderón

José Ramón López Rubí Calderón é um cientista político mexicano dedicado à análise, edição e consultoria. Como analista, tem experiência na mídia, governo e academia, onde trabalhou no Centro de Investigación y Docencia Económicas, na Cidade do México, e na Universidade Autônoma de Puebla. Publicou numerosos artigos, resenhas, ensaios e livros, entre os quais dois volumes de cartas aos estudantes de ciência política

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Em artigo anterior, apresentei dados e argumento sobre as pioras sofridas e provocadas pelo presidente do México. Com base em números oficiais e estimativas sobre o total de mortos, ficou estabelecida sua má gestão do combate à pandemia. Digo gestão porque Andrés Manuel López Obrador escolheu administrar a tragédia, em lugar de tentar evitá-la. E essa má administração conduziu a uma tragédia maior. Os simplistas se consolam com alguma versão do clichê “todos os países sofreram uma tragédia” (falso: um exemplo em contrário é o Vietnã), e se esses observadores são esquerdistas da moda seguem acreditando que São Andrés Manuel é um bom governante de esquerda, e que ele não tinha alternativas. Mas sua resposta - na falta de palavra melhor —à crise da pandemia na área econômica aponta em direção oposta.

Estipulemos, portanto, que a crise econômica se faz sentir em toda a região à qual pertence o México, mas não é sentida da mesma maneira em todos os países —nem da América Latina, nem do mundo. A crise específica mexicana se deve não só às restrições adotadas para combater a pandemia, por mais tardias e parciais que tenham sido, como também à reação do chefe de Estado— quase inexistente, em certo sentido. É sabido que as medidas epidemiológicas contra a crise de saúde diferiram internacionalmente, e que as medidas econômicas contra a segunda crise também são diversas. As “medidas” de Obrador são diferentes de, e piores que, as de muitos países.

Podemos ver a pandemia como um laboratório e um experimento. Às vezes, a natureza é um laboratório que nos oferece uma forma de experimento: um raro experimento socionatural em larga escala e em tempo real, social porque ocorre (com fatores naturais e biológicos) dentro e sobre a sociedade humana, e “natural” porque não foi projetado por um ser humano e tampouco está sob o controle de qualquer pessoa. Aqui não acreditamos em “teorias de conspiração”... O que acreditamos é na oportunidade de aproveitar analiticamente o experimento não intencional que surgiu.

O presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador, em 2018 - Edgard Garrido - 3.jul.2018/Reuters

Para isso, algumas hipóteses vinculadas são necessárias. 1. A probabilidade de que uma pessoa responsável atue responsavelmente contra essas crises é maior do que a probabilidade de que uma pessoa irresponsável comece a agir responsavelmente em resposta a elas. 2. Um governante mais ou menos responsável e verdadeiramente de esquerda e inimigo do neoliberalismo não deixaria de tomar possíveis decisões responsáveis, de esquerda e não neoliberais; dispondo de poder e trabalhando sob essa perspectiva, o governante responderia a uma situação extrema e grave não com “boas intenções” e manejos retóricos, mas com intenções e objetivos específicos e contundentes quanto à adoção de políticas em favor dos necessitados. 3. Se diante de uma crise dessa magnitude uma pessoa que disponha de algum poder não reagir com políticas de ajuda, a pessoa ou é irresponsável ou não é de esquerda, além de ser irresponsável.

Assim, o experimento mundial permitiria redefinir a ação presidencial de López Obrador como experimento fortuito que testa uma hipótese muito pertinente para o debate nacional e internacional sobre esse governante: se ele é de esquerda e inimigo do neoliberalismo, adotará medidas de esquerda e contrárias ao neoliberalismo.

Como o presidente mexicano reagiu à crise econômica relacionada à Covid-19? Com austeridade neoliberal, e um decreto que cortou em 75% os gastos com serviços gerais e materiais por toda a administração federal, gastos que são/eram vendas de empresas não necessariamente grandes que empregam cidadãos comuns de classe baixa e média; ele também buscou novas economias em todas as porções do orçamento que não sejam parte de seus projetos favoritos, pré-existentes e inamovíveis. Além de adotar a austeridade quando não deveria, reagiu mantendo 17 programas sociais que não haviam cumprido a promessa de reduzir sensivelmente a pobreza e a desigualdade e que tampouco diminuíram o impacto ou o tamanho da crise atual; programas que não servem aqueles a quem deveriam servir por serem tecnicamente deficientes, dependentes de clientelismo político e completamente insuficientes (se considerarmos os dados oficiais sobre a cobertura desses programas, que beneficiam um máximo de 22 milhões de pessoas, e os compararmos aos números sobre a pobreza nacional em que tanto insistem os adeptos de López Obrador, afirmando que ela afeta mais de metade dos mexicanos, o resultado é que os programas em questão não oferecem cobertura a cerca de dois terços dos pobres.) Somadas a esses programas ineficazes e sem ajustes, existem ausências: não houve nem uma reforma fiscal para que o 1% ou algo parecido pague mais impostos e nem qualquer outra reforma fiscal propriamente dita e progressista; e tampouco houve perdão, redução ou postergação das datas de pagamento de impostos das pequenas e médias empresas; continua a não existir apoio à renda dos cidadãos, seja na linha de um esquema de renda básica, seja de outra maneira, e continua a não existir um bom uso dos instrumentos de dívida, no contexto atual.

Sobre essas duas últimas falhas: A. López Obrador não proveu nenhum substituto de renda aos desempregados recentes e anteriores, afora os programas mencionados, e tampouco cobriu os salários daqueles que perderam a renda durante a quarentena ou transferiu dinheiro incondicionalmente aos necessitados, mesmo que por prazo limitado. B. A dívida pública mexicana equivale a 45% do Produto Interno Bruto (PIB), e subirá inevitavelmente por conta da pandemia. Por que não usar um pouco de dívida a fim de ajudar as pessoas para quem ajuda é urgente?

Calcula-se que os gastos do governo López Obrador contra a crise sejam inferiores a 0,5% do PIB. A Índia, outro país de fora do “primeiro mundo”, gastará o equivalente a 10% de seu PIB para promover a recuperação.

Assim, de que maneira poderíamos classificar a resposta de López Obrador, descrita acima, como de esquerda e contrária ao neoliberalismo? Para mim, é a reação de um líder de direita neoliberal, ou um pragmático míope, eleitoreiro e negligente. López Obrador é um chefe de Estado mas não um estadista. É um presidente indolente. Quer se equiparar a Franklin Roosevelt mas nada faz de rooseveltiano. E não segue ou compreende Keynes, que não afirmou que é sempre bom se endividar mas escreveu que “o auge, não a baixa, é o momento certo para austeridade” e que “a prosperidade e a depressão não são coisas que dependam (exclusivamente) de glórias passadas, mas sim das realizações atuais”.

Com as “realizações” atuais de López Obrador, a economia mexicana se contrairá em 9%, de acordo com a Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o Caribe (Cepal), e, de acordo com a ONU, o índice de pobreza no país subirá de 52% para 68,5% da população.

Tradução de Paulo Migliacci

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