Apoio do Brasil em aliança anti-China pode minimizar irritação de democratas com torcida pró-Trump

Em caso de vitória de Biden, postura contra país asiático seria essencial para manter relação com EUA

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São Paulo

“Nós já vimos essa cartilha antes. É vergonhoso e inaceitável. A família Bolsonaro precisa ficar fora da eleição dos EUA”, escreveu no Twitter o deputado democrata Eliot Engel, líder do comitê de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados americana, na segunda-feira (27).

Engel se referia a uma postagem do deputado Eduardo Bolsonaro, que compartilhou um vídeo de campanha do presidente Donald Trump com ataques aos democratas e escreveu: “Trump 2020”.

Os democratas estão cada vez mais irritados com a torcida ostensiva do presidente Jair Bolsonaro, de seus filhos e de alguns assessores por Trump, candidato à reeleição em novembro contra Joe Biden.

A memória da eleição de 2016, quando a sombra da interferência russa contra a então candidata democrata Hillary Clinton pairou sobre o pleito, ainda está muito viva. Assim, qualquer sinal de influência de um país estrangeiro sobre a votação americana é encarado como uma ameaça.

"Integrantes do governo brasileiro deveriam parar de dizer que apoiam a eleição de Trump, isso é visto como uma forma de interferência, cria mal-estar entre os democratas", diz Nick Zimmerman, diretor para o Brasil e Cone Sul no Conselho de Segurança Nacional durante o governo de Barack Obama.

"Não é à toa que [a chanceler alemã] Angela Merkel, [o presidente francês] Emmanuel Macron e [o premiê canadense] Justin Trudeau não se posicionam em relação à eleição americana."

Zimmerman cuidava do dia a dia da relação bilateral dos EUA com o Brasil e preparava Obama e o então vice-presidente, Biden, para interações com autoridades brasileiras.

Ainda que a média das pesquisas, como as compiladas pelo site RealClear Politics, mostre Biden 9,1 pontos porcentuais à frente de Trump, com 50%, contra 40,9%, Bolsonaro não parece ter um plano B.

O presidente Jair Bolsonaro ao falar com apoiadores na parte externa do Palácio do Alvorada, em Brasília
O presidente Jair Bolsonaro ao falar com apoiadores na parte externa do Palácio do Alvorada, em Brasília - Evaristo Sá - 22.jul.20/AFP

“A gente torce pelo Trump. Temos certeza de que vamos potencializar, e muito, o nosso relacionamento. Se der o outro lado, da minha parte vou procurar fazer algo semelhante [manter a aproximação com os EUA]”, disse o presidente brasileiro, durante transmissão nas redes sociais, em 16 de julho. "Se eles não quiserem, paciência, né? O Brasil vai ter que se virar por aqui."

Já o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, em entrevista à Bloomberg publicada na segunda-feira, disse que o Brasil está pronto para trabalhar com um eventual governo democrata.

Um dos grandes incentivadores do atual alinhamento entre os dois países, o ministro afirma que "os avanços [da relação] aconteceram entre Brasil e EUA, e não entre dois presidentes".

Integrantes do governo brasileiro que acompanham as relações entre os países afirmam que, independentemente de declarações de Bolsonaro, o governo vem fazendo contato com legisladores democratas e republicanos, além de conversas com integrantes das duas campanhas.

Uma Casa Branca sob Biden naturalmente desejaria manter relações estreitas com o Planalto, devido à importância estratégica global do Brasil e da necessidade de cooperação do país em relação à China.

Mas isso pode não ser suficiente para eliminar o mal-estar. Fora as repetidas declarações de apoio a Trump, há, ainda, as posições em relação a ambiente, direitos LGBT e políticas para populações indígenas.

"Biden desempenhou papel crucial na relação com o Brasil durante o governo Obama. Trata-se de uma pessoa que realmente dedicou seu tempo a desenvolver a relação com o país", diz Zimmerman, que viajou com o candidato democrata ao Brasil em 2014 e assessorou Obama e Biden na visita da presidente Dilma Rousseff à Casa Branca, em 2015.

A viagem a Washington ocorreu em um contexto de tensão. Dois anos antes, em junho de 2013, veio à tona que Dilma e alguns de seus principais assessores haviam sido alvos de espionagem da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA, na sigla em inglês), assim como governos de outros 15 países, como França e Alemanha. A Petrobras também teria sido monitorada.

A revelação gerou uma crise que levou ao cancelamento da visita de Estado da petista à Casa Branca prevista para ocorrer naquele ano. A questão só foi superada em 2015. Um ano antes, Biden veio ao Brasil para assistir à estreia da seleção americana de futebol na Copa do Mundo e se encontrar com Dilma.

“Biden é uma pessoa que entende a importância estratégica do Brasil como potência global, e não apenas na América Latina”, diz Zimmerman. "Mas as prioridades do governo Bolsonaro e a maneira pela qual o presidente se relaciona com Trump podem complicar as coisas. Se o Brasil estiver disposto a chegar a um meio termo, especialmente em questões ambientais e sociais, acredito que Biden estará interessado em estreitar a relação com o país.”

Na visão do governo, o principal problema em relação ao tema ambiental e de direitos humanos são distorções e percepções equivocadas sobre as políticas de Bolsonaro. Por isso, dizem os assessores, uma melhor comunicação sobre esses assuntos será chave para quebrar o gelo.

Segundo Camila Asano, diretora de Programas da ONG Conectas, um governo democrata não se alinharia às prioridades atuais da política externa do Brasil, como defesa da liberdade religiosa, posicionamento contra pautas de gênero e educação sexual, além de outras questões conservadoras às quais o eleitorado de Biden costuma se opor.

Desmatamento na Amazônia e violações de direitos humanos também poderiam se tornar empecilhos para o apoio dos EUA à entrada do Brasil na OCDE, o clube dos países ricos, por exemplo.

Uma maneira de se aproximar de um governo democrata seria com uma postura de oposição à China. A Guerra Fria 2.0 entre China e Estados Unidos e as pressões para que o Brasil encampe um dos lados da briga vão continuar com Trump reeleito ou com Biden presidente.

Na semana passada, relatório intitulado “O novo grande irmão: China e o autoritarismo digital” recomendava ao Senado americano o apoio à criação de uma coalizão de países para conter a China e tecnologias de empresas que não se baseiam em valores democráticos, entre as quais a Huawei.

A surpresa é que o relatório foi produzido por assessores dos senadores democratas que integram o Comitê de Relações Exteriores, e não pelos tradicionalmente linha-dura republicanos.

Biden já anunciou que, caso eleito, promoverá uma cúpula global para a democracia em seu primeiro ano de governo para confrontar países não democráticos. Em outras palavras, uma aliança anti-China.

“Acredito que veremos muita continuidade na política democrata para a China, e até um endurecimento nas relações com o país asiático", diz Zimmerman.

Integrantes do governo brasileiro também veem grande convergência em relação à abordagem dos riscos representados pela China, mas nada disso funcionará se Bolsonaro, seus filhos e aliados continuarem a se intrometer na campanha eleitoral americana.

Para Zimmerman, uma boa maneira de não incinerar pontes seria passar a mensagem de que o Brasil quer trabalhar junto com os EUA, independentemente de partidos. Eduardo Bolsonaro, após a repercussão da mensagem do congressista Eliot Engel, deu uma amostra de que a tarefa não será fácil.

Nesta terça-feira (28), publicou no Twitter uma mensagem dúbia. Afirmou que "é certo que as relações Brasil-EUA estão acima das pessoas" e que, independentemente de quem vencer as eleições nos EUA, "em 2020 trabalharemos para manter essa boa relação".

Mas finalizou dizendo que é "igualmente certo que posso ter minhas convicções pessoais e me manifestar". Na mesma mensagem, pediu a brasileiros que ajudaram a eleger Bolsonaro que apoiem Trump, "o Ronald Reagan da minha geração".

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