Descrição de chapéu Coronavírus

Por que os países contam as mortes por Covid-19 de forma diferente?

Nações com alto número de casos, como Rússia e Índia, registram relativamente poucos óbitos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Os números de casos e de mortes por país na pandemia de Covid-19 geram rankings diferentes: EUA e Brasil lideram nos dois casos, mas a coisa muda do terceiro lugar em diante.

Índia, Rússia e África do Sul estão em terceiro, quarto e quinto na contagem de infecções, mas Reino Unido, México e Itália registraram mais mortes. Essa diferença gera questionamentos e levou os governos britânico e chileno a fazerem alterações na forma de contar e de informar os dados.

A própria ideia de um ranking está em xeque, pois não existe uma padronização sobre como as mortes devem ser averiguadas. Há apenas recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde) —e não uma auditoria internacional sobre os números.

Funcionários de casa funerária em Santiago, no Chile, colocam caixa de vítima da Covid-19 em carro
Funcionários de casa funerária em Santiago, no Chile, colocam caixa de vítima da Covid-19 em carro - Javier Torres - 1º.jun.20/AFP

Isso abre espaço para distorções involuntárias na relação entre os doentes e as mortes e também para que regimes autoritários, por exemplo, consigam esconder dados que considerem indesejados.

Mesmo em situações normais, a contagem de óbitos é variada. Há registros feitos nos cartórios e apurações dos órgãos de saúde para mapear doenças e problemas sociais, como a violência, e pode ocorrer divergência entre eles.

No Chile, a soma diária de vítimas de Covid-19 era feita com base nos dados de cartórios. Em meados de julho, a divulgação passou a se basear em um relatório de um departamento de estatísticas em saúde, que antes apenas fornecia números semanais.

“Na maioria dos países, a concepção desses sistemas de informação sobre mortes não permite ter informação em tempo real e não foi feito para uso em emergências”, avalia Eliseu Waldman, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.

"Os dados costumam ser confiáveis, mas morosos. Para ter as coisas rapidamente, é preciso fazer adaptações. Ou gambiarras."

Essa demora ocorre porque pode levar tempo para confirmar a causa da morte, como nos casos em que um exame positivo de coronavírus chega dias depois do enterro.

No Brasil, em casos de suspeita de Covid-19, o prontuário fica em aberto até que um funcionário dos serviços de vigilância epidemiológica cheque o resultado e atualize o registro.

“É um trabalho manual, pois os sistemas de óbitos e dos resultados de laboratórios não se conversam”, explica Marcelo Gomes, coordenador do Infogripe (sistema nacional de monitoramento de doenças respiratórias, ligado ao Ministério da Saúde) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz.

Por aqui, a tarefa de registrar os dados é feita pelas secretarias municipais de saúde, que os enviam para sistemas de monitoramento estaduais e federais. No entanto, mudar o documento que vai para os cartórios fica a cargo das famílias.

“Essa atualização posterior geralmente não acontece”, comenta Gomes. Por isso, as estatísticas com base nos cartórios, no caso brasileiro, seriam bem menos precisas.

Em uma aparente tentativa de agilizar o processo, a contagem de mortes na Inglaterra era feita com o cruzamento de duas listas: a de testes positivos para Covid-19 e a de mortes. Quando uma pessoa que teve o vírus morria, mesmo que meses após o diagnóstico, entrava automaticamente para a conta de vítimas —o que gerava distorções.

“Por esse método, ninguém jamais poderia se curar da Covid-19”, disseram os professores Yoon Loke, da universidade de East Anglia, e Carl Heneghan, de Oxford, que questionaram o modelo.

Em outras partes do Reino Unido, como a Escócia, há uma linha de corte: a morte só entra para a lista do novo coronavírus se ocorrer até 28 dias depois do diagnóstico.

Em 17 de julho, o ministro da Saúde britânico, Matt Hancock, anunciou uma revisão dos dados do país.

A contagem feita até então vai contra a determinação da OMS. A entidade criou um guia sobre como relatar as mortes por Covid-19, cujas diretrizes o Brasil adotou. Basicamente, o material prevê três situações.

Na primeira, entram pessoas com teste positivo que morreram por complicações da Covid-19, como uma pneumonia. Assim, o atestado deve apontar a causa da morte (Síndrome Respiratória Aguda Grave, por exemplo), e os fatores que a causaram (Covid-19). Outros complicadores, como diabetes e obesidade, podem ser citados como causas relacionadas, por terem agravado o quadro.

No segundo caso, o paciente tem muitos sinais de que está com Covid-19, mas não foi feito um teste de laboratório para confirmar. Nesse caso, a OMS recomenda que a morte seja registrada como “diagnóstico clínico”, com um código diferente. Se houver confirmação posterior, o registro muda.

Existe também a possibilidade de diagnóstico com base em tomografia dos pulmões —já que a Covid-19 deixa uma lesão característica neles.

Na terceira situação, a pessoa pegou Covid-19, mas a infecção não teve relação com a morte. É o caso de um paciente que sofreu um acidente ou teve um infarto após ser diagnosticado com coronavírus. Nesse caso, a OMS indica que a morte não pode ser atribuída à pandemia.

A Bélgica adotou a política de contar todas as mortes suspeitas no ranking de Covid, o que levou o país a uma taxa de 847 mortes por milhão de habitantes, uma das maiores do mundo. No Brasil, ela está em 410.

O Brasil também conta esses casos de diagnóstico clínico como mortes por Covid, mas eles são minoria.

Em cerca de 140 mil casos de pacientes graves ou mortos, houve cerca de 3.000 nessas condições, segundo levantamento feito pela Folha com base no Sistema de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde.

Essas regras da OMS enfrentam uma série de obstáculos na vida real. Em um paciente acometido por vários problemas ao mesmo tempo, pode ser difícil definir qual deles teve maior peso.

O problema se agrava em UTIs lotadas, com equipes médicas sobrecarregadas, que precisam registrar as mortes em meio a tarefas mais urgentes.

Em algumas cidades dos EUA, como Chicago e Milwaukee, um segundo médico reavalia e certifica os registros de óbito por Covid-19, para aumentar a segurança dos dados.

Outro ponto é que ainda são feitos poucos testes em muitos países. Alguns só o aplicam em casos graves e que chegaram aos hospitais. O Reino Unido levou semanas para incluir na conta oficial as mortes ocorridas em asilos, por exemplo.

A contagem de óbitos é ainda mais complicada onde não há sistemas eficientes de registros nem fora da crise sanitária, como em parte da África.

Uma reportagem do jornal The Washington Post mostrou que na Índia, em tempos normais, até 20% das mortes não são registradas, independentemente da causa, a maioria por ocorrerem em áreas rurais.

O governo indiano, chefiado pelo nacionalista Narendra Modi, cita o baixo número de mortes (33 mil diante de 1,4 milhão de casos) como sinal de que o país lida com a doença melhor do que os outros e que é menos afetado por ter muitos jovens.

Em junho, a prefeitura de Mumbai deu um ultimato aos hospitais: se não apresentassem dados precisos, poderiam ser fechados. Em dois dias, foram relatadas mais de 800 mortes pela doença.

Na Rússia, terceira do ranking global de casos, foram registradas 13 mil mortes em meio a mais de 800 mil infectados. O governo também defende que o número se deve a uma boa gestão da crise.

“Países com tendências autocráticas tendem a ter mecanismos de contagem de mortes já programados para subestimar os dados”, diz Waldman, da USP.

No Brasil, o governo de Jair Bolsonaro buscou dificultar a divulgação dos dados diários sobre Covid no começo de junho. Depois disso, um consórcio de veículos de imprensa, que inclui a Folha, passou a fazer a soma dos dados das secretarias estaduais e a divulgar boletins.

Nos EUA, a falta de coordenação federal levou os estados a adotar métricas diferentes entre si para avaliar o avanço da doença. A entidade Prevent Epidemics, com sede em Nova York, defende o uso de 15 critérios para monitorar a situação e avalia que nenhum dos 50 estados americanos os atende de forma completa.

No Colorado, um legislador republicano acusou o estado de inflar os dados. Na Flórida, há suspeitas contrárias: reportagens apontam que o governo estadual tem ocultado alguns dados, o que pode indicar subnotificação.

Em geral, há um consenso entre os especialistas de que os dados sobre infectados e mortos pelo novo coronavírus pelo mundo estão subestimados e deverão aumentar conforme forem feitas revisões no futuro.

“Nós definitivamente pensamos que há mortes que não foram contadas”, disse Jennifer Nuzzo, pesquisadora da universidade John Hopkins, ao The New York Times.


Recomendações da OMS para registrar mortes (seguidas pelo Brasil)

  • Caso confirmado

Paciente testou positivo para Covid-19 e morreu de uma doença relacionada a ela, como síndrome respiratória

  • Caso sob suspeita

Paciente teve sintomas de Covid-19, mas não foi feito teste ou resultado não chegou antes da morte. O caso fica em aberto e pode ter o status revisto nos dias seguintes.

  • Morte sem relação

Pessoa foi diagnosticada com Covid-19, mas morreu por outra razão, como um acidente. Caso não entra nas estatísticas de morte pela doença

Colaborou Flávia Faria

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.