Descrição de chapéu Eleições EUA 2020

Líderes negras consolidam espaço durante acerto de contas racial nos EUA

Prefeitas, deputadas e uma senadora são cotadas para vaga de vice do democrata Joe Biden

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Washington

Foram necessários mais de dois séculos para que a primeira mulher negra chegasse ao Senado americano.

Em 1993 —204 anos após a fundação do Congresso dos EUA—, a democrata Carol Moseley Braun fez história ao assumir seu mandato pelo estado de Illinois.

Antes dela, três políticos negros haviam exercido o cargo de senador e, depois, vieram outros seis, mas somente uma era mulher: Kamala Harris, eleita em 2016.

A subrepresentação das mulheres negras é gritante na política americana, mas os protestos contra o racismo e a violência policial as colocaram no centro de um debate que mira o próximo grande lance da disputa à Casa Branca: a escolha da candidata a vice do democrata Joe Biden.

O ex-vice de Barack Obama já havia decidido, em meados de março, nomear uma mulher para ajudá-lo no desafio de derrotar Donald Trump em novembro, mas as manifestações após o assassinato de George Floyd — um homem negro asfixiado por um policial branco em Minneapolis— fizeram com que a representação da população negra se tornasse quase imperativa para a sua chapa.

As mulheres são 55% do eleitorado americano, e pesquisas recentes mostram que Biden está mais de 20 pontos à frente do presidente nesse grupo —em 2016, Hillary Clinton superou o republicano entre elas por apenas 14 pontos.

Apesar de serem a maioria dos eleitores, as mulheres representam cerca de 25% do Congresso dos EUA, mas o índice despenca ainda mais quando se trata de parlamentares negras.

Dos 435 deputados da Câmara dos Representantes dos EUA, somente 22 são mulheres negras.

Dos 100 senadores, só Kamala Harris figura com os dois títulos e, entre as 100 maiores cidades americanas, apenas 7 têm prefeitas negras. Todas elas são do Partido Democrata, o que amplia o leque de opções para Biden.

Líder nas pesquisas nacionais e em estados decisivos, o democrata tem feito um cálculo minucioso para escolher sua companheira de chapa. Sabe que uma mulher negra pode ajudar na tão necessária mobilização às urnas de jovens e pessoas negras que estiveram nas ruas nas últimas semanas, mas não pode perder os independentes e mais conservadores do Meio-Oeste.

Ele promete fazer o anúncio na primeira semana de agosto, mas tenta manter mistério sobre o perfil da escolhida e até já desconversou sobre a indicação ser necessariamente de uma mulher negra. "Pode ser latina, asiática, nativa", disse.

Prefeitas, deputadas e a senadora que estão sendo cotadas para o posto têm trabalhado para mostrar que preenchem os requisitos, mas também querem aproveitar o momento de acerto de contas racial que a sociedade americana vive para tentar mudar a história e levar mulheres negras a outro patamar da política do país.

KAMALA HARRIS, 55
Senadora pela Califórnia desde 2017

Ainda era junho de 2019 quando Kamala Harris se destacou em um duro embate com Joe Biden.

Ambos participavam do primeiro debate entre candidatos democratas à Casa Branca, e a senadora acusou o ex-vice-presidente de ter trabalhado com políticos racistas e ser contrário ao fim da segregação racial nas escolas, na década de 1970.

"Havia uma garotinha na Califórnia que pertencia à segunda geração que ia de ônibus para a escola todos os dias. Essa garotinha era eu", disse Harris, emocionada, ao se referir ao "busing", prática em alusão aos ônibus que levavam crianças negras para estudar em bairros de população predominantemente branca (e vice-versa) nos EUA na tentativa de integrar as comunidades.

Caso seja escolhida para compor a chapa de Biden —e ela é uma das favoritas—, Harris deverá ser questionada sobre as declarações e vai precisar usar do pragmatismo que lhe é habitual para explicar a aliança.

Filha de imigrantes —uma pesquisadora da Índia e um professor da Jamaica—, a ex-procuradora da Califórnia aposta no seu apelo entre progressistas e moderados para tentar catalizar o amplo arco de eleitores de que Biden precisa para vencer Trump.

Em seu primeiro mandato como senadora, Harris é hoje a mais conhecida entre as mulheres negras na política americana, com posições críticas a Trump e bandeiras que vão desde a reforma da polícia —na esteira da atual demanda dos protestos de rua— até o corte de impostos da classe média.

A pré-campanha presidencial foi o que alçou a senadora de forma mais proeminente no cenário nacional, mas os motivos que levaram à sua desistência, ainda em dezembro de 2019, também revelam suas principais fragilidades: postura considerada errática diante de temas caros aos eleitores mais à esquerda, como a proposta de saúde gratuita para todos, em relação à qual já se mostrou a favor e contra.

A avaliação é que sua campanha perdeu o foco justamente na tentativa de se equilibrar entre os diversos segmentos do eleitorado, mas a senadora nunca passou de 10% nas pesquisas.

Apesar de se definir como uma procuradora progressista, analistas e movimentos à esquerda criticam a atuação de Harris diante da justiça americana.

Afirmam que, quando pressionada a adotar reformas no sistema criminal, a então procuradora em São Francisco (2004-2011) não agiu de forma assertiva.

Pelo contrário, defendeu condenações ilegais que foram garantidas por má conduta de oficiais, incluindo adulteração de provas e falso testemunho, e contribuiu para a prisão injusta em diversos casos —principalmente envolvendo réus pobres e negros.

A avaliação é que o procurador do estado tem o poder de fazer justiça, ainda que isso signifique rever decisões. No caso de Harris, dizem ativistas, a posição era utilizada para cimentar injustiças.

Entre temas importantes no debate progressista, como pena de morte e liberação do uso recreativo da maconha, Harris também teve postura considera controversa pelo campo da esquerda.

Em 2014, apelou contra uma decisão do condado de Orange que dizia que a pena de morte era inconstitucional e riu quando uma repórter perguntou se ela liberaria o uso da maconha para recreação —como é a lei hoje na Califórnia e em outros estados americanos.

Harris ainda se opôs a investigar tiroteios envolvendo policiais e a apoiar a regulação de câmeras usadas nas abordagens feitas pelos oficiais, por exemplo, temas que emergiram com força com os protestos recentes no país.

KEISHA LANCE BOTTOMS, 50
Prefeita de Atlanta desde 2018

"Sou mãe de quatro crianças negras nos EUA. Uma delas de 18 anos. Quando vi que havia protestos violentos em Atlanta, fiz o que qualquer mãe faria. Telefonei para o meu filho e perguntei: cadê você?."

A prefeita de Atlanta ganhou destaque ao falar com honestidade de seus desafios ao mesmo tempo em que dava respostas assertivas para duas das principais crises nos últimos meses: a pandemia do coronavírus e os protestos contra o racismo e a violência policial.

Keisha Lance Bottoms precisou agir rápido diante da convulsão social que se acumulou no coração de sua cidade —um oficial do departamento de polícia de Atlanta matou a tiros um homem negro em 12 de junho, pouco mais de duas semanas após o assassinato de George Floyd..

A prefeita foi à TV falar com compaixão à família da vítima, anunciou a demissão do autor do disparo e fez da reforma do sistema de Justiça uma bandeira renovada, com restrições ao uso de força por policiais e a limitação do uso de dinheiro para pagar fiança.

Em outra frente que lhe conferiu projeção nacional —e, ao lado de Kamala Harris, o posto de bem cotada para a vaga de vice de Biden—, Bottoms se recusou a seguir as ordens do governador da Geórgia, o republicano Brian Kemp, no enfrentamento da pandemia.

Kemp anunciou a reabertura da economia do estado no início de maio, mesmo com o número de casos de Covid-19 crescendo em Atlanta, principalmente entre os negros. Bottoms disse que não cumpriria o cronograma e retardaria o processo de retomada na capital, seguindo recomendações das autoridades de saúde.

Formada em direito, Bottoms é filha de um conhecido cantor americano da década de 1960, Major Lance, e cumpriu dois mandatos no conselho municipal de Atlanta, espécie de Câmara de Vereadores, antes de ser eleita prefeita, em 2017.

Seus críticos dizem que a atual crise é apenas um sintoma de problemas anteriores relacionados à população negra na cidade —dos 500 mil habitantes de Atlanta, 51% são negros—, como desigualdade e racismo.

Para eles, Bottoms não tratou dessas questões a fundo enquanto era conselheira municipal e agora só quer aproveitar o momento político para surfar em medidas que deveriam ter sido tomadas há tempos.

VAL DEMINGS, 63
Deputada pela Flórida desde 2017

Em janeiro deste ano, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, escolheu sete deputados para acompanhar o processo de impeachment de Donald Trump no Senado.

Apenas um deles não tinha experiência como advogado: a novata Val Demings, que viu no gesto a oportunidade de consolidar sua marca no Congresso americano ainda durante seu primeiro mandato.

Demings foi a primeira mulher a chefiar a polícia de Orlando, mas percebeu logo que um julgamento de impeachment leva em conta muito mais elementos políticos do que a aplicação efetiva da lei com que estava acostumada a lidar por quase 30 anos nas ruas da cidade.

Apesar dos esforços da deputada e dos demais democratas na argumentação aos senadores, Trump foi absolvido pela maioria republicana da Casa poucos dias depois.

Demings nasceu Valdez Venita Butler, sétima filha de um casal que criou a família em uma cabana de dois quartos perto de Jacksonville, na Flórida.

Formou-se em criminologia na universidade do estado, trabalhando como atendente do Mc Donald's para ajudar a pagar as contas de casa.

Depois de formada, atuou como assistente social e foi recrutada pelo departamento de polícia de Orlando, onde fez carreira como oficial por 27 anos.

Em 2017, trocou o dia a dia policial pela Câmara, onde tem se tornado uma voz proeminente sobre temas como controle de armas e aplicação da lei.

Sua origem na Flórida, um dos estados-chave para a disputa eleitoral deste ano, conta a favor para sua também alta pontuação no banco de apostas para o posto de vice de Biden.

Sua experiência política, porém, ainda é pequena, e há quem coloque isso como uma das barreiras para que ela não seja escolhida para compor a chapa democrata.


SUSAN RICE, 55
Conselheira de segurança nacional e representante permanente dos EUA na ONU durante o governo Obama

Susan Rice costuma dizer que sua trajetória é baseada no principal ensinamento de seu pai, um professor de economia na Universidade Cornell: "Nunca use sua raça como desculpa ou vantagem".

Conselheira de segurança nacional e representante permanente dos EUA na ONU durante o governo Barack Obama, Rice afirma que seu pai acreditava que a segregação racial o impedira de ir mais longe na carreira e não desejava que os filhos convivessem com o mesmo fardo.

Graduada em história pela Universidade Stanford, uma das mais prestigiosas do país, Rice começou a trabalhar para o governo americano durante a gestão de Bill Clinton, ainda na década de 1990, como assistente do Departamento de Estado.

Com a eleição do primeiro presidente negro dos EUA, foi promovida ao cargo de conselheira de segurança nacional e é bastante identificada com os avanços que o governo Obama fez em diversas áreas da política externa, como o acordo nuclear com o Irã e o Acordo de Paris, sobre clima —ambos abandonados por Trump.

Tem boa relação com Biden, mas nunca foi candidata a um cargo eletivo. Sua escassa experiência em política partidária, atrelada à expertise em uma área muito específica, a internacional, poderia, segundo críticos, limitar seu campo de atuação como candidata a vice.


KAREN BASS, 66
Deputada pela Califórnia desde 2011

Assistir aos movimentos de direitos civis pela TV ao lado do pai, na década de 1960, despertou o interesse no ativismo político em Karen Bass.

Nascida em Los Angeles, voluntariou-se para trabalhar na campanha presidencial do democrata Bobby Kennedy ainda adolescente, em 1968.

Formou-se em medicina e fez mestrado em serviço social antes de se dedicar a um programa que tentava unir de forma ampla as duas áreas que mobilizaram sua juventude.

No fim da década de 1980, trabalhou em um programa na tentativa de transformar condições sociais e econômicas do sul de Los Angeles que levavam ao uso do crack, ao crime e à violência.

A associação comunitária da qual Bass fez parte bloqueou a construção de lojas de bebidas e incentivou a ocupação dos espaços por pequenas empresas e moradias populares na região.

Em 2004, formalizou sua trajetória política ao ser eleita para a assembleia estadual da Califórnia, onde, em 2008, foi a primeira mulher negra a presidir um poder legislativo estadual no país.

Em Washington desde 2011, tornou-se uma importante defensora na Câmara de propostas de reforma policial, além de políticas de saúde pública, educação e assistência social.

É líder do subcomitê de África, saúde global e direitos humanos e da bancada de parlamentares negros do Congresso.

Apesar de seu extenso currículo político tanto na Califórnia quanto na capital americana e do acúmulo de experiências que envolveram atuação contra distúrbios sociais e econômicos, Bass é pouco conhecida nacionalmente e não passou pelo escrutínio público a que figuras com mais projeção já foram submetidas.

STACEY ABRAMS, 46
Ex-líder democrata na Câmara dos Deputados da Geórgia; candidata derrotada ao governo do estado em 2018

Stacey Abrams chegou a ser uma das favoritas para o posto de vice de Joe Biden.

A pandemia ainda não havia atingido em cheio os EUA no início do ano, e os democratas olhavam para o estado de Geórgia como possível termômetro da reação de opositores a Trump em regiões republicanas.

Em 2018, Abrams perdeu por pouco a eleição ao governo para Brian Kemp, do partido de Trump, mas auxiliares de Biden avaliavam que, caso democratas mostrassem força e comparecimento na disputa das primárias no estado, uma vice como Abrams poderia ser ideal para o partido.

Nascida em Wisconsin, estado decisivo para a disputa à Casa Branca, Abrams é formada em direito por Yale, um das mais renomadas universidades americanas, e é conhecida por ser uma política ágil.

Eleita em 2010 para a assembleia de Geórgia, foi líder da minoria democrata e construiu sua trajetória sobre questões como o direito ao voto, expansão da assistência médica e reforma do sistema criminal.

Abrams sabia que estava bem cotada pela equipe de Biden e foi uma das que falaram diretamente sobre o assunto em público, dizendo-se uma "excelente companheira de chapa" para o democrata.

Seu ativo, afirmava, era ser capaz de atrair o voto de eleitores que se sentem ignorados e desmotivados e que, portanto, não costumam ir às urnas no dia da eleição.

Esse nicho é determinante para Biden —Hillary Clinton não conseguiu mobilizar pessoas negras, jovens e latinas em número suficiente para vencer Trump em estados-chave, como Wisconsin, Pensilvânia e Michigan.

O impacto do coronavírus e dos protestos de rua na sociedade americana, porém, deslocaram os holofotes para os políticos com cargos públicos, e o nome de Abrams acabou perdendo força.


MURIEL BOWSER
Prefeita de Washington desde 2015

A capital americana nunca teve um prefeito branco. Desde 1975, os oito políticos que comandaram Washington eram negros, todos do Partido Democrata, e Muriel Bowser é a segunda mulher a ocupar o cargo.

Formada em história e com mestrado em políticas públicas, diz que nunca havia se imaginado prefeita, mas sim uma administradora de empresas.

Seu perfil não agrada aos democratas mais progressistas, que afirmam que sua plataforma é limitada e não dá a atenção necessária aos mais vulneráveis.

Bowser viu na onda de protestos contra o racismo e a violência policial uma oportunidade para tentar ganhar projeção —ela nunca foi cotada para vice de Biden— e conquistar esse importante nicho eleitoral em uma cidade majoritariamente democrata como Washington.

Em fervorosos embates com Trump via imprensa e redes sociais, Bowser promoveu uma ação que pintou o asfalto e mudou o nome da rua em frente à Casa Branca para Black Lives Matter (vidas negras importam), um dos principais motes dos atos após o assassinato de George Floyd.

A frase "black lives matter" (vidas negras importam), que dá nome a uma das organizações antirracistas americanas, foi pintada no asfalto da rua 16, próxima à Casa Branca, em Washington
A frase "black lives matter" (vidas negras importam), que dá nome a uma das organizações antirracistas americanas, foi pintada no asfalto da rua 16, próxima à Casa Branca, em Washington - Joshua Roberts - 5.jun.20/Reuters

A prefeita justificou o ato —aplaudido por muitos dos ativistas— como uma maneira de responder à reação violenta do governo Trump aos protestos pacíficos.

Ela pediu que o presidente retirasse das ruas os soldados do Exército americano enviados para reprimir as manifestações na capital.

Mas a liderança do movimento não gostou. O Black Lives Matter de Washington disse que Bowser nunca abraçou as demandas do grupo e que estava se aproveitando do momento político para se destacar.

Pedia que ela fosse além da estética e adotasse medidas práticas, como a transferência de recursos da polícia para programas sociais.

O orçamento proposto pela prefeita para o ano fiscal de 2021, porém, incluiu um aumento de 3,3% para o departamento de polícia metropolitana.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.