Menos de um ano após Nobel da Paz, premiê etíope perde apoios e fala em guerra civil

Em meio a desentendimentos étnicos, protestos por morte de músico deixam 166 mortos no país

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São Paulo

Menos de um ano após ganhar o Nobel da Paz por encerrar mais de 20 anos de hostilidades com a vizinha Eritreia, o premiê da Etiópia, Abiy Ahmed, 43, vê sua base de apoio se dividir e ameaçar sua possível reeleição no segundo país mais populoso da África.

O caso mais recente desse processo resultou em 166 mortos entre terça (30) e domingo (5), durante protestos contra o assassinato do músico e ativista Haacaaluu Hundeessaa.

As canções de Hundeessaa, ex-preso político e símbolo dos oromo, mesmo grupo étnico do premiê, embalaram os atos que culminaram na derrubada do antigo governo e na chegada de Abiy ao poder, em 2018.

Integrantes da etnia oromo protestam em rodovia no estado de Minnesota, nos Estados Unidos, em apoio ao atos na Etiópia 
Integrantes da etnia oromo protestam em rodovia no estado de Minnesota, nos Estados Unidos, em apoio ao atos na Etiópia  - Stephen Maturen - 1º.jul.20/Getty Images/AFP

Após Abiy assumir como primeiro-ministro, no entanto, Hundeessaa passou a criticar a gestão, o que influenciou a maneira como a mobilizada juventude oromo enxerga o atual chefe de governo.

“Havia um sentimento latente de insatisfação dos oromo que ia se acumulando nos últimos anos”, afirma Nicolas Lippolis, pesquisador do Centro de Estudos de Economias Africanas da Universidade de Oxford.

“[Abiy] chegou ao poder com a agenda deles. Só que, quando assumiu, houve uma percepção de que a agenda havia se transformado. Em várias ocasiões a insatisfação dos oromo tem se manifestado contra o próprio Abiy.”

No complexo mosaico pluriétnico etíope, os oromo são o mais numeroso dos cerca de 80 grupos e subgrupos que dividem o território comandado durante praticamente todo o milenar império etíope pelos amara, até sua queda em 1974 —Abiy foi o primeiro oromo a ascender ao poder em quase 2.000 anos.

Isso só foi possível após três anos de protestos, dos quais Abiy era um dos líderes.

A política e os partidos na Etiópia são marcados por grandes divisões étnicas. Existem nove regiões administrativas baseadas nessas divisões e que, supostamente, teriam autonomia. Segundo Lippolis, porém, na prática isso não acontecia, e o governo central sempre acumulou poder.

Abiy assumiu um discurso pan-Etíope, que, ao mesmo tempo em que prega o slogan Medemer (sinergia), também concede maior liberdade política aos grupos étnicos e liberta presos políticos.

Os atos que o levaram ao poder pediam mais direitos para esses grupos expressarem suas identidades étnicas e mais autonomia em suas regiões. A união na diversidade proposta por Abyi, porém, não era uma pauta.

O premiê também implodiu a coalizão que liderava o país, comandada pela etnia tigrínio, e fundou uma nova legenda, o Partido da Prosperidade, buscando encerrar distinções étnicas.

Mas a iniciativa se tornou combustível para lideranças regionais usarem um discurso etno-nacionalista visando enfraquecer a figura do premiê.

Com a instabilidade gerada a partir da morte de Hundeessaa, os resquícios autoritários ressurgiram. O Exército ocupa as ruas da capital desde quinta, e a internet está cortada há uma semana.

O expediente é comum em tempos de manifestações na Etiópia. Abiy, criador da agência de segurança cibernética do país, retirou seus rivais do poder, mas manteve a prática.

“Pessoas com quem mantenho contato em Addis Abeba dizem que o que viram agora é pior do que todas as crises que testemunharam antes”, relata Lippolis.

“Mesmo em bairros onde moram funcionários de organismos internacionais, zonas nobres da capital, elas relatam ouvir tiros nas ruas, o que não é comum por lá.”

Na terça, após o início dos sangrentos protestos, Abiy falou em “inimigos internos e externos” que estariam tentando destruir sua agenda reformista. Afirmou também, sem oferecer detalhes, que haveria um plano de iniciar uma guerra civil no país.

Segundo o premiê, a ideia estava sendo planejada havia algum tempo pela mídia e por usuários no Facebook, mas garantiu que a tentativa havia sido frustrada pelas forças de segurança e que os responsáveis responderiam na Justiça.

Na terça-feira, 35 pessoas foram presas após um impasse entre a polícia e os seguranças de Jawar Mohammed, 34, também do povo oromo e figura central na história recente da Etiópia.

Dono da rede de notícias OMN, ele retornou de dez anos de exílio nos Estados Unidos em 2018, quando Abiy chegou ao poder.

Jawar era acusado pelo antigo governo de crimes contra a Constituição, e a OMN, classificada como uma organização terrorista. Quando voltou ao país, foi recebido como herói. Hoje, tornou-se mais um crítico de Abiy, afirmando que o premiê abandonou a agenda dos oromo.

No ano passado, após acusar o governo em suas redes sociais de tentar retirar sua escolta oficial para depois assassiná-lo, mobilizou grandes protestos que resultaram em 78 mortes.

Jawar e seus seguidores foram presos na semana passada enquanto tentavam desviar o corpo de Hundessaa para ser enterrado na capital em vez de sua cidade natal, Ambo.

Addis Abeba é uma ilha multiétnica dentro da região oromo, e alguns membros desse grupo entendem que a cidade deveria integrar a região. Assim, o enterro de Hundessa na capital seria simbólico.

Segundo a polícia, no carro de Jawar foram encontrados oito fuzis Kalashnikovs, cinco pistolas e nove rádios transmissores.

Depois de romper com o primeiro-ministro, filiou-se a um partido rival e tem indicado que concorrerá contra Abiy no próximo pleito.

As eleições, que já haviam sido adiadas para agosto deste ano, foram postergadas outra vez por causa do coronavírus. Ainda sem data definida, devem ocorrer em 2021.

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