Descrição de chapéu The New York Times

Novos dados mostram como Covid-19 afeta negros e latinos de maneira desproporcional nos EUA

Pandemia de coronavírus escancara desigualdade racial e socioeconômica no país

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The New York Times

Teresa e Marvin Bradley não sabem ao certo como contraíram o coronavírus. Teresa é enfermeira em Michigan e talvez tenha trazido o vírus do hospital onde trabalha. Talvez o vírus tenha vindo com um parente que os visitou. Talvez tenha sido outra coisa.

O que é certo, segundo novos dados federais que possibilitam a visão mais abrangente até agora dos quase 1,5 milhão de pacientes com coronavírus nos EUA, é que os Bradley não fogem do normal.

As disparidades raciais em relação a quem contrai o coronavírus vêm sendo vistas em cidades grandes como Milwaukee e Nova York, mas também em áreas metropolitanas menores, como Grand Rapids, em Michigan, onde vivem os Bradley.

Essas desigualdades ficaram dolorosamente claras quando Teresa, que é negra, foi levada de cadeira de rodas para a sala de emergência. “Todo mundo ali era afro-americano”, comentou. “Todo mundo.”

Mulher negra usa máscara estilizada com a inscrição 'Black Lives Matter' (vidas negras importam), em Nova Jersey
Mulher negra usa máscara estilizada com a inscrição 'Black Lives Matter' (vidas negras importam), em Nova Jersey - Mark Makela - 3.jul.20/Getty Images/AFP

As cifras iniciais do vírus já haviam indicado que negros e latinos são atingidos em índices mais altos.

Mas os novos dados federais —disponibilizados depois de o New York Times processar o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC)— revelam um quadro mais claro e completo: negros e latinos vêm sendo afetados pelo coronavírus de maneira desproporcional e em todo o país, em centenas de condados em áreas urbanas, suburbanas e rurais e em todas as faixas etárias.

As diferenças se mantêm em diferentes estados e regiões. Estão presentes em cidades rurais das Grandes Planícies, em condados suburbanos e em muitas das maiores cidades do país.

“O racismo sistêmico não se evidencia apenas no sistema de justiça criminal”, disse Quinton Lucas, o terceiro prefeito negro de Kansas City, no Missouri. No estado, 40% dos infectados pelo coronavírus são negros ou latinos, apesar de esses grupos comporem apenas 16% da população estadual.

“Estamos vendo essa doença ceifar vidas na parte urbana dos EUA, na parte rural dos EUA e em todos os lugares onde, francamente, as pessoas merecem uma oportunidade igual de viver –de receber atendimento médico de ter acesso a testes e ao rastreamento de seus contatos.”

Para os Bradley, ambos com pouco mais de 60 anos, os sintomas do vírus não pareceram grande coisa no início. Começou com uma coceira na garganta.

Mas em pouco tempo surgiram febre e dificuldade respiratória. Quando chegaram ao hospital, foram separados. Teresa foi internada, enquanto Marvin foi mandado para casa.

Ele disse que estava se sentindo doente demais para ir embora, mas não teve escolha. De volta à sua casa, ele se sentiu sozinho e sem saber como tratar a doença.

Marvin disse que conhece várias pessoas que adoeceram com Covid-19. Algumas delas morreram. “Somos os mais vulneráveis a esta coisa”, comentou.

Em Kent County, que abrange Grand Rapids e seus subúrbios, 63% dos casos de coronavírus envolvem negros e latinos, apesar de estes comporem apenas 20% da população do condado.

Autoridades sanitárias e líderes eleitos de Michigan disseram não haver uma razão clara para que negros e latinos em Kent County sejam afetados ainda mais adversamente que em outras partes do país.

Entre os 249 condados com pelo menos 5.000 habitantes negros dos quais o New York Times obteve dados detalhados, o índice de infecção de afro-americanos é mais alto que o de brancos em 235 deles.

Em 178 dos 206 condados com pelo menos 5.000 habitantes latinos analisados pelo jornal, os índices de contaminação dos residentes latinos são mais altos que os dos brancos. Um dos locais mais alarmantes nesse quesito é também um dos mais ricos: Fairfax County, ao lado de Washington.

O condado tem três vezes mais habitantes brancos que latinos. No entanto, até o final de maio, quatro vezes mais habitantes latinos que brancos foram infectados por coronavírus, segundo dados do CDC.

A renda familiar média em Fairfax é mais ou menos o dobro da média nacional de cerca de US$ 60 mil (R$ 321 mil) ao ano. A habitação é cara no condado, e o resultado é que pessoas com renda modesta vivem apinhadas em apartamentos, onde manter distância social é quase uma impossibilidade.

Em 2017, segundo dados do condado, era preciso dispor de renda anual de quase US$ 64 mil (R$ 342 mil) para custear um apartamento típico de um quarto. E muitas pessoas são obrigadas a continuar viajando diariamente para chegar ao trabalho.

Dados demográficos confirmam o risco. Em todo o país, 43% dos trabalhadores negros e latinos atuam em empregos no setor de serviços ou na produção, em funções que normalmente não podem ser desempenhadas à distância, conforme revelam dados do censo de 2018.

Apenas um em cada quatro trabalhadores brancos exerce esse tipo de função.

E os latinos têm chance duas vezes maior que os brancos de dividir seu domicílio com outras pessoas, dispondo de menos de 46 metros quadrados por pessoa, segundo a Sondagem Habitacional Americana.

As cifras nacionais sobre infecções e mortes decorrentes do vírus subestimam a disparidade, até certo ponto, já que o vírus está muito mais presente entre os americanos mais velhos, que são desproporcionalmente brancos em comparação aos americanos mais jovens.

Quando se comparam as infecções e mortes entre grupos da mesma faixa etária, as disparidades são ainda mais extremas.

Os novos dados do CDC mostram que o índice de contaminação de latinos na faixa dos 40 aos 59 anos é cinco vezes maior que o de brancos na mesma faixa etária. As diferenças são ainda mais chocantes quando se trata dos óbitos: entre os latinos que morreram, mais de um quarto tinha menos de 60 anos. Entre os brancos que morreram de Covid-19, apenas 6% tinham menos de 60.

Jarvis Chen, pesquisador e professor da Escola Harvard T.H. Chan de Saúde Pública, diz que as grandes disparidades raciais e étnicas encontradas em áreas suburbanas e cidades-dormitório, reveladas nos novos dados do CDC, não deveriam surpreender.

Para ele, a discrepância entre como vivem e trabalham as pessoas de diferentes raças, etnias e status socioeconômicos pode ser ainda mais pronunciada fora dos centros urbanos do que nas cidades grandes.

“À medida que a epidemia se desloca para os subúrbios, temos bons motivos para prever que as disparidades vão crescer”, diz.

Mais casos, mais mortes

O índice mais alto de mortes decorrentes do vírus entre negros e latinos tem sido explicado em parte por uma prevalência maior de problemas de saúde subjacentes, incluindo diabetes e obesidade.

Mas os novos dados do CDC revelam uma disparidade importante no número de casos do vírus, não apenas de mortes —fato que, segundo cientistas, destaca desigualdades não relacionadas a outros problemas de saúde.

A ênfase dada às comorbidades “me enfurece”, disse a médica Mary Bassett, diretora do Centro FXB de Saúde e Direitos Humanos, da Universidade Harvard, “porque essa diferença diz respeito na realidade a quem ainda precisa sair de casa para ir ao trabalho, quem tem que sair de um apartamento que divide com várias outras pessoas, pegar transporte público lotado e ir a um local de trabalho apinhado de pessoas".

"E nós simplesmente não reconhecemos o fato de que aqueles de nós que temos o privilégio de continuar a trabalhar de casa não enfrentamos esses riscos.”

Em junho, o CDC estimou que o número real de casos do vírus é dez vezes superior ao número de casos notificados. Autoridades do órgão disseram que não podiam determinar se esses casos não notificados apresentam disparidades raciais e étnicas semelhantes às vistas nos casos notificados.

Mas disseram que infecções mais graves —que estão mais frequentemente ligadas às comorbidades e que levam as pessoas a buscar atendimento médico com mais frequência— têm mais chances de ser notificadas como casos do coronavírus.

A diferença na notificação de casos pode, segundo as autoridades do CDC, explicar parte das disparidades raciais e étnicas no número de infecções documentadas. Mas, para eles, também está claro que houve disparidades grandes no número de mortes e de casos da doença.

Para medir como a pandemia de coronavírus está afetando vários grupos demográficos nos Estados Unidos, o New York Times obteve do Centro de Controle e Prevenção de Doenças um banco de dados de casos confirmados, com as características de cada pessoa contaminada.

Os dados foram obtidos depois de o jornal mover uma ação sob a Lei de Liberdade de Informação.

O CDC forneceu dados sobre 1,45 milhão de casos notificados à agência pelos estados até o final de maio. Em muitos dos registros faltavam informações críticas pedidas pelo jornal como a raça e o condado de residência de uma pessoa contaminada.

Por essa razão a análise foi baseada nos quase 640 mil casos para os quais raça, etnia e condado de residência do paciente eram conhecidas.

Com esses dados, o New York Times pôde medir as disparidades raciais em 974 condados, responsáveis por 55% da população dos EUA —apanhado geral muito mais amplo do que havia sido possível até então.

Os índices de infecção e mortes foram calculados agrupando os casos contidos nos dados do CDC por raça, etnia e faixa etária e comparando os totais com as estimativas populacionais mais recentes do Escritório de Recenseamento para cada condado.

Para obter os totais nacionais, o New York Times calculou índices baseados tanto na população real de cada condado quanto na população ajustada por idade.

Os ajustes por idade explicam a prevalência mais alta do vírus entre os americanos mais velhos e os padrões etários variados nos diferentes grupos raciais e étnicos.

Os totais nacionais não incluem dados para oito estados para os quais não foram fornecidos dados ao nível de cada condado, mas houve disparidade raciais nos índices de casos de coronavírus em cada um desses estados também.

Tradução de Clara Allain

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