Psiquiatra estrela entra em choque com New York Times para preservar anonimato

Publicação de nome completo levaria a ataques e ameaçaria relação com pacientes, defende autor de plataforma de discussão

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Washington

Scott Alexander achou que seria interessante ver a história de seu blog contada nas páginas de um dos maiores jornais do mundo.

O psiquiatra americano foi procurado no mês passado por um repórter do New York Times interessado no Slate Star Codex, plataforma alimentada por Alexander há sete anos e que ficou famosa por debater temas de medicina a política de um jeito bastante heterodoxo.

Segundo Alexander, chamou a atenção do jornalista o blog reunir pessoas relevantes para o setor de tecnologia e ter antecipado tendências da pandemia, como o uso das máscaras e a possibilidade de estocar itens básicos antes de autoridades ordenarem a quarentena como forma de conter o coronavírus.

Fachada do prédio do jornal americano The New York Times, em Nova York
Fachada do prédio do jornal americano The New York Times, em Nova York - Johannes Eisele - 30.jun.20/AFP

Em 22 de junho, porém, a reviravolta. Alexander decidiu deletar o blog quando o repórter disse que publicaria seu nome completo na reportagem —Scott Alexander são os dois primeiros nomes do psiquiatra, que esconde o último alegando preocupações com sua segurança e vida profissional.

Alexander diz não querer que seus pacientes saibam quem ele é fora do ambiente de trabalho. Também afirma receber ameaças de morte por parte de leitores insatisfeitos com algumas de suas opiniões.

Caso sua identidade seja revelada, defende que precisará se preocupar de verdade com as intimidações até agora virtuais.

"Meu nome são sílabas aleatórias. Vamos dizer que seja 'Jones'. O que você aprendeu sobre mim com isso? O que é preciso saber para comprovar minha credibilidade —como minhas credenciais e minha história— tenho informado sem problemas", afirma Alexander à Folha, em entrevista por email.

"Da maneira como aprendi psiquiatria, pacientes não devem ter preconcepções sobre seus psiquiatras. Essa é uma regra opcional, pessoas estão autorizadas a violá-la, e acredito que, caso a reportagem seja publicada, eu a estarei violando também. Mas quero fazer tudo o que posso para cumpri-la por ora."

O caso abriu um novo debate nos EUA sobre quando a imprensa americana deve usar pseudônimos para manter o anonimato de um entrevistado e gerou um levante de integrantes do Vale do Silício em defesa de Alexander.

O psiquiatra diz que expôs seus temores ao repórter e pediu que ele não utilizasse seu nome completo, mas ouviu que a política do New York Times é publicar o nome real dos personagens.

Diante da negativa, conta Alexander, tirar o conteúdo do ar pareceu uma forma de tentar fazer com que o jornalista desistisse da história.

"Ou, ao menos, seria impossível escrever uma matéria sem relatar o quão bravo e magoado eu estava com a decisão que eles tomaram de revelar meu nome completo."

Procurado pela Folha, o New York Times disse que não comenta o que pode ou não publicar no futuro.
Ponderou, no entanto, que o objetivo é "sempre fornecer aos leitores todas as informações precisas e relevantes que pudermos" quando se trata de "figuras influentes ou dignas de nota".

Em outras ocasiões, o jornal fez uso de pseudônimos em suas reportagens.

Em fevereiro, em um longo texto sobre o podcast de esquerda Chapo Trap House, por exemplo, não revelou o nome verdadeiro de um dos editores do programa, conhecido como Virgil Texas.

A publicação também não costuma usar nomes completos em caso de delatores, dissidentes de países com regimes totalitários ou vítimas de crimes.

No ano passado, o jornal foi criticado ao divulgar que o informante do telefonema entre Donald Trump e o presidente da Ucrânia, Vladimir Zelenski, era um agente da CIA, apesar de o nome dele ter ficado em segredo.

Alexander sabe que não pode usar da prerrogativa de sigilo da fonte para proteger sua identidade porque, nesse caso, ele é objeto e não a fonte da reportagem. Ainda assim, defende o direito ao pseudônimo como uma forma mais democrática de criar debates e publicar informações sensíveis.

"Fico me questionando se os policiais tivessem permissão para escrever anonimamente sobre o que estava acontecendo [nas corporações dos EUA], as pessoas não ficariam tão surpresas toda vez que algo acontecesse envolvendo má conduta policial", disse em alusão aos protestos contra o racismo e violência policial no país.

Na avaliação do psiquiatra, muitos de seus pacientes, que vão da extrema direita à extrema esquerda, não seriam capazes de manter um envolvimento terapêutico com ele depois de terem acesso às suas ideias sobre drogas, educação, sistema de saúde e policiamento.

Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP e colunista da Folha, diz que esconder a identidade é opção pessoal do psiquiatra, mas não acredita que a possível divulgação de seu nome invalide seu trabalho clínico. Para ela, a ideia de neutralidade absoluta do profissional é absurda.

"É muito difícil que o paciente não tenha nenhuma referência [sobre o médico]. Essa fantasia de neutralidade é absurda. Achar que as pessoas olham para a gente e não veem nada. A gente vaza dicas na maneira de vestir, no que tem no consultório, na aliança ou não na mão esquerda."

Iaconelli lembra ainda que, nas décadas de 1950 e 1960, o psicanalista inglês Donald Woods Winnicott participou de um programa de rádio em que dava conselhos e emitia opiniões, enquanto Freud, criador da psicanálise, atendia conhecidos e frequentava os mesmos lugares que muitos de seus pacientes na Viena do século 19.

"O que vale na sessão é sustentar um lugar no qual o paciente entra com algo que notadamente não se refere ao seu estilo de vida, e você [psiquiatra/psicólogo/psicanalista] escuta para além disso."

Os textos de Alexander muitas vezes apareciam na lista da revista The Atlantic como "o melhor do jornalismo" e, segundo defensores de sua versão, a imprensa tradicional ficou incomodada com ele.

Já seus críticos dizem que os meandros do grupo de racionalistas do Vale do Silício podem ser o real objeto da reportagem e a razão para as preocupações de Alexander e seus seguidores.

Com mais de 600 mil visualizações por mês, o blog do psiquiatra havia se tornado um lugar para discussão de diversos racionalistas, entre os quais uma minoria que leva o raciocínio lógico para campos controversos —e às vezes ofensivos— na tentativa de explicar raça e diferenças genéticas ou biológicas entre sexos, por exemplo.

Deletar o blog também serviu para tirar do ar comentários e posts antigos do próprio Alexander, como um de 2016, quando escreveu que Donald Trump não poderia ser considerado um "racista declarado".

No texto de despedida do blog, Alexander lançou uma carta aberta ao editor de tecnologia do New York Times pedindo que seu nome não fosse publicado.

Em poucos dias, juntou mais de 6.700 assinaturas, de 56 países, muitas delas de empresários de tecnologia. O psiquiatra diz que, caso a reportagem venha à tona sem seu nome real, o blog pode voltar ao ar.

"Se publicarem o texto sem meu nome verdadeiro, e isso os fizer reconsiderar suas políticas sobre pseudonimato, ficarei satisfeito."

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