Descrição de chapéu The New York Times

Ex-deputada dos EUA que renunciou após ter nudes vazados tenta se reconstruir

Vista no passado como estrela democrata em ascensão, Katie Hill vai lançar livro e podcast sobre política

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Jessica Bennett
The New York Times

Se Katie Hill fosse uma pessoa diferente, talvez tivesse ido embora e procurado uma saída na religião. Talvez tivesse pedido desculpas, em lágrimas, com um marido zeloso a seu lado, e prometido fazer melhor.

Talvez tivesse se internado numa clínica de reabilitação de comportamento sexual compulsivo, percorrido a Trilha dos Apalaches ou simplesmente negado terminantemente que havia ocorrido qualquer coisa fora do comum.

Mas Hill, ex-deputada da Califórnia cujo caso com uma funcionária de sua equipe de campanha foi exposto quando nudes dela (feitos sem seu consentimento, segundo Hill) começaram a circular online, não fez nenhuma dessas coisas.

Ela renunciou a seu cargo menos de duas semanas após as fotos irem a público e menos de um ano depois do início de seu mandato.

A ex-deputada dos EUA Katie Hill grava o primeiro episódio de seu novo podcast 'Naked Politics With Katie Hill', em sua casa, em Washington
A ex-deputada dos EUA Katie Hill grava o primeiro episódio de seu novo podcast 'Naked Politics With Katie Hill', em sua casa, em Washington - Justin Gellerson - 23.jul.20/The New York Times

Assim, numa tarde recente em Washington, enquanto a deputada Alexandria Ocasio-Cortez, sua amiga e ex-colega, estava fazendo um discurso eletrizante sobre sexismo no plenário da Câmara, Hill estava em casa sozinha, com ovos e cerveja Heineken na geladeira, tentando fazer funcionar um laptop Samsung velho.

“Falando sério, não entendo”, disse Hill, exasperada. Ela estava de legging e camiseta regata diante do laptop, colocado sobre uma mesa bamba de cozinha. “Ele não tinha esse problema. Agora tem.”

Hill, 32, estava tentando gravar uma entrevista com seu ex-assessor Bill Burton, que também foi vice-secretário de imprensa do presidente Barack Obama.

A entrevista seria para um novo podcast que ela está apresentando. No passado, ela poderia ter contado com a ajuda de um assessor ou da assistência técnica de algum departamento governamental. Mas hoje em dia ela está sozinha com sua gata Archie, que gosta de andar em cima do teclado enquanto ela digita.

Foi decidido então que Burton gravaria o áudio com seu próprio computador. Hill ficou aliviada.

“OK”, disse ela ao microfone. “Bem-vindos à primeira edição de ‘Naked Politics with Katie Hill’ [política nua e crua com Katie Hill]." "Você é o insider absoluto”, disse ao convidado, “e com certeza pode nos contar tudo sobre como a política é um asco, certo?”.

Dependendo do seu ponto de vista, a própria Hill pode ser um estudo de caso perfeito para fundamentar essa premissa. Ou você pode achar que a própria ex-deputada contribuiu para ela.

Vista no passado como estrela democrata em ascensão —favorita da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, cuja filha lhe deu Archie de presente—, Hill fez manchetes em 2018 quando venceu em um distrito republicano.

A revista Vice declarou que ela travou “a campanha mais millenial que já houve” e documentou sua campanha como parte de uma onda crescente de candidatas mulheres. Hill foi uma das pouquíssimas políticas eleitas que é bissexual.

A ex-deputada Katie Hill em um parque perto de sua casa em Washington, nove meses depois de renunciar
A ex-deputada Katie Hill em um parque perto de sua casa em Washington, nove meses depois de renunciar - Justin T. Gellerson - 23.jul.20/The New York Times

Mas seu mandato chegou ao fim quase tão rapidamente quanto começara, quando fotos dela nua –em uma, segurava um cachimbo de água usado para fumar maconha, e em outra, escovava o cabelo de uma mulher— foram publicadas pelo site conservador RedState e, mais tarde, pelo tabloide britânico Daily Mail.

Hill acha que as fotos foram vazadas por seu ex-marido, Kenny Heslep, que ela disse ser abusivo e que teria ameaçado arruiná-la caso o deixasse, coisa que ela fez cinco meses antes do vazamento das fotos.

Por meio de uma advogada, Heslep se negou a dar declarações para a reportagem. Ele nega ter vazado as fotos, dizendo que seu computador foi invadido.

Mas a fonte do vazamento ficou em segundo plano diante daquilo que as fotos revelaram: Hill e seu marido estavam tendo um relacionamento com uma funcionária jovem de sua equipe de campanha, uma subordinada da então candidata.

O relacionamento não violou as normas da Câmara, atualizadas em meio ao movimento MeToo, porque aconteceu durante a campanha, não depois de Hill ter sido eleita.

Mas o RedState divulgou que Hill também teve um relacionamento com seu assessor legislativo, e isso teria violado as regras —tanto ela quanto o assessor negam. Foi aberta então uma investigação de ética para apurar a conduta.

A investigação não chegou a ser concluída, porque Hill renunciou ao cargo, apesar de Pelosi e outros a terem encorajado a não fazê-lo.

Em um discurso de renúncia que fez usando um terno vermelho vivo —que ela descreveu como seu “uniforme de batalha”— e batom da mesma cor —sua “pintura de guerra”—, Hill pediu desculpas pelo comportamento, mas disse que estava renunciando pelo menos em parte em função dos “dois pesos e duas medidas”.

“Estou indo embora. Mas temos homens que foram acusados com credibilidade de atos intencionais de violência sexual e que continuam a exercer suas funções em conselhos de direção, na Suprema Corte, neste organismo e, o pior de tudo, no Salão Oval”, disse ela.

Nove meses mais tarde, Hill ainda procura se conformar com sua rendição. “Ainda tenho muitos sentimentos conflitantes sobre minha decisão”, afirma. “Mas estou aqui e vou tentar fazer o melhor que posso.”

Ela ainda está mergulhada em um divórcio litigioso com Heslep. Com Carry Goldberg, advogada conhecida pela defesa dos direitos de vítimas, ela pretende mover ainda no início do outono no hemisfério norte (primavera no Brasil) uma ação cível ligada à distribuição ilegal das imagens. Heslep será citado na ação.

As fotos continuam na internet e provavelmente sempre vão continuar. É uma realidade à qual Hill está se acostumando a cada dia.

“Acho que em determinado momento você não tem outra saída senão aceitar. As pessoas que quiserem me ver em posições muito incômodas, desajeitadas, nada lisonjeiras, nuas, podem. Elas podem ver. E provavelmente já viram.”

Ela própria continua a vê-las —em suas respostas no Twitter, plataforma na qual tem 175 mil seguidores, em avaliações online da firma de tatuagens de sua irmã na Califórnia, onde foram deletadas rapidamente.

“Essas imagens ficaram gravadas na minha mente para sempre”, disse. “E nem sequer são boas fotos! É isso que fico sempre repisando na cabeça. Meu Deus.”

Dizem que a melhor maneira de enterrar seu pior resultado na internet é fazer algo novo. Hill está tentando. Com o dinheiro que sobrou de seu fundo de reeleição, ela lançou recentemente um comitê de ação política, HerTime, dedicado a apoiar mulheres mais jovens e mulheres não brancas.

Também trabalha na produção de “Naked Politics”, um podcast de entrevistas que pretende lançar neste mês e cujo título, explicou, é uma tentativa de “retomar o controle”.

Em 11 de agosto ela lançou um livro, “She Will Rise” (ela vai se levantar), um misto de memórias e manifesto político no qual relata a história de sua passagem pelo Congresso e faz recomendações políticas, em um esforço para inspirar a próxima geração de líderes a eleger mais mulheres.

Junto com aparentemente todos os outros títulos de temática ou autoria feminina, o livro seria lançado em tempo para o centenário da ratificação da 19ª emenda constitucional, que proíbe o governo de negar o direito ao voto com base no gênero.

O livro passa por cima de muitas coisas. É cheio de chavões, como romper com as barreiras invisíveis impostas ao avanço das mulheres, trata mulheres como “guerreiras” e questiona o que será preciso “para assumirmos nossos lugares de direito em todas as mesas de liderança”.

Mas, francamente, você pode perdoá-la por isso: o livro foi escrito em três semanas. Se você acha que vem tendo um ano infernal, é porque não viveu o 2020 de Hill.

Pouco depois de renunciar ao mandato, ela se preparou para deixar o apartamento que dividia com outra deputada. Mas antes de poder se mudar para seu novo apartamento, sua mãe, enfermeira de traumatologia em Los Angeles, foi hospitalizada. Precisava de uma cirurgia cerebral de urgência.

A cirurgia foi realizada numa quinta-feira. Na sexta-feira, Hill, sua irmã Kristin Sterling, 29, e seu irmão Danny Bennett, 20, puderam visitar a mãe, que estava indo bem. Hill e Bennett, que estava em treinamento para se tornar militar da Marinha, ficaram acordados até tarde conversando.

Ela diz que os dois eram muito próximos. Ele havia sido dependente de drogas e vivera com ela por um ano quando estava no colégio. Na manhã seguinte, quando Hill desceu do seu quarto na casa de sua mãe, encontrou o irmão desacordado. Ele morrera de uma overdose: cocaína com fentanil, segundo o relatório do médico legista.

“Eu estava sozinha quando o encontrei. Fiz ressuscitação cardiopulmonar, a emergência veio e tudo o mais”, disse Hill. Ela estava sentada no sofá, mexendo com o cabelo, ansiosa. Chovia lá fora, e a água caía sobre sua pequena varanda, que dá para o campo da liga de beisebol infantil.

“Passaram quase uma hora tentando ressuscitá-lo. A hora da morte que acabaram determinando foi 20 minutos antes de eu encontrá-lo.” Ela começou a chorar. “Ainda nem cheguei perto de lidar com a culpa que sinto por conta disso.”

Na esteira de algo tão arrasador, seria compreensível se ela ficasse paralisada pelo sofrimento. “Ainda estamos em choque”, disse Sterling em entrevista por telefone.

Mesmo assim, pouco mais de duas semanas mais tarde, Hill estava em um avião outra vez, viajando para assistir ao discurso do Estado da União do presidente Donald Trump. Seria a última vez que ela veria a maioria de seus colegas.

“Pareceu-me importante estar lá. Como se fosse para dizer ‘não vou me esconder’”, explicou. “Me deram este broche para toda a vida, sabe?” Ela se referia ao broche congressional, que confere a quem o recebe a filiação vitalícia ao Capitólio. Hill guarda o item numa caixa de joias em seu armário de toalhas.

Muitos de seu próprio partido ficaram espantados quando Hill renunciou. Por que simplesmente não pedir desculpas e manter a cabeça erguida? Renunciar antes de a investigação ética ser concluída não passaria a impressão de que ela tinha algo a esconder? Ela própria não estava ajudando o “dois pesos, duas medidas” a se perpetuar?

“Eu fui uma das pessoas que lhe mandei mensagens de texto dizendo ‘não desista, não renuncie’. Faça terapia, faça alguma coisa, procure se recuperar”, disse Christine Pelosi, filha da presidente da Câmara e líder do Caucus de Mulheres pelos Democratas da Califórnia. “Mas ela escolheu o caminho que escolheu.”

Em seu livro, Hill descreve o que ocorreu como uma espiral. “Fiquei completamente arrasada com tudo –quantas pessoas haviam visto meu corpo nu, os comentários, os artigos, as milhares de opiniões, as mensagens de textos, as ligações, as ameaças”, escreve.

“Eu começava a tremer, a chorar, a vomitar. Me pareceu insuperável naquele momento.”

Ela se questionou quem iria decepcionar se continuasse no cargo. E se renunciasse? Será que se tornaria um ônus, uma carga pesada para os membros do partido? Para o legado da turma histórica de deputadas novatas? E, se continuasse no cargo —tendo se manifestado a favor do MeToo e pedido a renúncia de Al Franken depois de ele ter sido acusado de apalpar mulheres com quem trabalhara—, isso não faria dela o pior tipo de hipócrita?

“Foi um erro de julgamento, sem dúvida alguma”, disse Hill, falando de seu relacionamento com a mulher mais jovem. “Aquele foi meu erro mais crucial —não ter colocado limites entre minha equipe e eu.”

Assim, ela fez o que achou que minimizaria o prejuízo causado. “Se eu não tivesse uma responsabilidade perante outras pessoas, incluindo meus eleitores e as pessoas que gostam de mim... Não sei. Simplesmente não sei.”

Sob alguns aspectos, ela está mais livre agora. Não há reeleição com que se preocupar. Não há líderes partidários a ofender. Ela pode sair com quem quiser, e a máscara imposta pela Covid-19 possui uma vantagem: com ela, é mais fácil Hill estar entre outras pessoas de modo anônimo.

A ex-deputada Katie Hill acaricia seu gato em sua casa, em Washington
A ex-deputada Katie Hill acaricia sua gata em sua casa, em Washington - Justin T. Gellerson - 23.jul.20/The New York Times

Mas ela diz que o sentimento de culpa ainda está presente.

Sentimento de culpa pela mulher mais jovem, que ela diz que amou e a quem pediu desculpas “inúmeras vezes”. “Ela não quer falar comigo agora, e entendo isso”, disse Hill.

Sentimento de culpa pelo que ela fez sua família passar, além de seus ex-funcionários de campanha, alguns dos quais perderam seus empregos.

Hill disse que sente mais culpa por seu distrito eleitoral, que, na eleição especial realizada para eleger seu substituto, voltou a escolher um republicano.

Com seu terapeuta, ela vem trabalhando a autocompaixão, além daquela teoria de Brené Brown segundo a qual “você pode ter feito algo de ruim, mas não é uma má pessoa”.

“Essa é uma das perguntas que se repetem e com que eu me debato. ‘Será que sou uma pessoa má?’. E acho que tive que decidir. Acho que não sou uma pessoa má.”

Não que ser uma boa pessoa seja pré-requisito para fazer carreira na política. Ou para reconstruir uma carreira na política. “Neste momento, acho difícil me imaginar voltando a me candidatar”, disse Hill, falando de um potencial futuro na política.

“Mas isso não quer dizer que não haja um cenário em que isso venha a ser possível.”

Tradução de Clara Allain

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