Igreja Universal da Argentina é investigada por movimentações bancárias suspeitas

Inquérito apura origem de mais de US$ 100 milhões depositados por pastores entre 2010 e 2014

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Rute Pina, da Agência Pública Mariel Fitz Patrick, de Infobae
São Paulo e Buenos Aires

Ao menos US$ 100 milhões em numerosas movimentações bancárias suspeitas levaram a Justiça Federal da Argentina a abrir uma investigação preliminar para apurar operações financeiras nas contas da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) no país entre 2010 e 2014.

A informação consta em documentos obtidos pela investigação transnacional “Paraísos de Dinheiro e Fé”, realizada pelo Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (Clip, na sigla em espanhol), o programa de pós-graduação da Universidade Columbia e o centro OCCRP, em parceria com nove veículos de imprensa da América Latina —entre eles o portal argentino Infobae, a Pública e a Folha.

A investigação contra a filial da igreja brasileira, que teve início em 2017, averigua suposta lavagem de dinheiro após a constatação de “aumentos significativos de depósitos em espécie”, sem comprovação de origem lícita, nas contas bancárias da entidade religiosa, segundo documento judicial obtido pelo Infobae, ao qual a Pública teve acesso.

Fachada da sede da Igreja Universal na Argentina, em Almagro, em Buenos Aires
Fachada da sede da Igreja Universal da Argentina, em Buenos Aires - Maximiliano Luna/Infobae

Na Argentina, organizações, inclusive as religiosas, que recebem doações acima de um limite estabelecido devem obter uma declaração sobre a origem dos fundos recebidos.

Naquele momento, o valor estipulado era de 400 mil pesos (cerca de R$ 30 mil). Segundo informações fornecidas por fontes judiciais ao Infobae, em um período de cinco anos, as transferências sem comprovação nas contas da Iurd somaram 831 milhões de pesos argentinos (cerca de US$ 100 milhões, na cotação do período da investigação).

A apuração das contas da Iurd é um desdobramento de um processo judicial contra o empresário argentino Ricardo Alberto Cis, hoje pastor da igreja em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo.

Cis foi investigado por evasão de divisas em uma ação que apurava a compra da Radiodifusora Esmeralda S.A., proprietária da Rádio Buenos Aires. Rebatizada como Rede Aleluia, atualmente a emissora pertence ao núcleo midiático da Iurd na Argentina.

Cis passou a ser investigado na Justiça Federal de San Isidro, na região metropolitana de Buenos Aires, após uma denúncia da Administração Federal de Receita Pública (Afip, na sigla em espanhol), agência do Ministério da Economia que é a autoridade tributária da Argentina.

Dez anos depois de sua abertura, o processo contra o pastor e empresário argentino foi arquivado por conta de uma modificação na legislação penal tributária que reduziu o delito a uma “evasão simples” –por causa da alteração, o prazo para a investigação diminuiu, e a ação prescreveu.

Mas a juíza federal Sandra Arroyo Salgado, que conduzia o processo contra Cis, decidiu abrir uma investigação específica contra a Iurd após análise dos informes patrimoniais e financeiros das pessoas físicas e jurídicas envolvidas na compra da Radiodifusora Esmeralda.

O avião comprado pela Iurd na Argentina foi retido no Brasil em fevereiro de 2012
Avião comprado pela Iurd na Argentina, que foi retido no Brasil em fevereiro de 2012 - Divulgação Receita Federal

As informações foram reunidas pela Unidade de Inteligência Financeira (UIF), autarquia ligada ao Ministério da Economia e dedicada a prevenir crimes financeiros, como lavagem de dinheiro.

No relatório, o órgão indica que Cis, que publicamente estava à frente da tentativa de aquisição da Rádio Buenos Aires por US$ 15 milhões, em 1999, pode ter atuado como intermediário nas negociações —quando a beneficiária seria na realidade a Igreja Universal do Reino de Deus.

Na época, a legislação argentina impedia que as emissoras fossem filiais, subsidiárias ou “controladas ou dirigidas por pessoas físicas, ou jurídicas estrangeiras”.

A Afip, equivalente à Receita Federal no Brasil, também detectou inconsistências nas declarações de renda de Cis no período fiscal de 1999-2000, e, segundo o órgão, o empresário não poderia justificar a origem de fundos para a aquisição da rádio.

Durante essa investigação, em julho de 2017, o relatório da UIF identificou ao menos 12 Registros de Operações Suspeitas (ROS) contra a Igreja Universal. Para o órgão, as movimentações poderiam ser indícios de um esquema de lavagem de dinheiro. Por isso, a juíza Arroyo Salgado decidiu pela abertura de um inquérito contra a igreja, separadamente do processo hoje arquivado, contra o pastor Ricardo Cis.

Após o parecer da magistrada, uma discussão de competência da nova investigação retardou o início da apuração em um ano. Em 2019, a investigação foi encaminhada ao foro Penal Econômico Federal e está a cargo do fiscal Emilio Guerberoff.

Por mais de uma semana, a Pública pediu insistentemente o posicionamento da assessoria de imprensa da Igreja Universal do Reino de Deus sobre o caso, além de esclarecimentos sobre a relação financeira entre a matriz brasileira e a filial argentina, mas não obteve retorno até a publicaçnao deste texto.

A reportagem tentou contato também com o pastor Ricardo Cis por meio de suas redes sociais e email.

Na Argentina, o Infobae entrou em contato com a presidente da igreja no país, Idinei María Oracz de Assis, que se recusou a comentar o caso. Ela afirmou que “devido à atual situação de isolamento [pelo coronavírus], a Comissão Diretora da Instituição se encontra impossibilitada de tratar do tema”.

Compra suspeita da rádio

A tentativa de comprar a licença da Radiodifusora Esmeralda foi barrada por três anos, mas, por meio de um decreto do ex-presidente Eduardo Duhalde, o extinto Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer) autorizou a transação em 2003.

Em uma entrevista na época, o presidente do órgão, Carlos Caterbetti, defendeu a legalidade do processo, mas afirmou que seria “impossível comprovar” que Cis cederia a concessão da rádio à entidade religiosa.

Atualmente, a Igreja Universal possui 281 templos nas principais cidades argentinas
Um dos 281 templos da Igreja Universal na Argentina - Maximiliano Luna/Infobae

O empresário, que já era pastor na época, não admitiu atuar em nome da Universal. A entidade religiosa, por outro lado, só reconheceu o empresário, que atuava no ramo de publicidade, como um fornecedor.

Para justificar à Afip o montante de dinheiro investido na emissora de rádio, Cis argumentou que o valor teria sido obtido com a venda, por US$ 6,2 milhões, das ações da Rihaca S.A., empresa de impressão de folhetos e agência publicitária da qual o empresário era sócio.

A compra foi efetuada, de acordo com os autos do processo, por uma empresa constituída nas Ilhas Virgens Britânicas cujo nome têm referência bíblica: Gênesis Holdings Ltda.

Antes da venda da agência de publicidade, a esposa de Cis, a brasileira Carlinda Maria Araújo Tinoco, com quem o empresário é casado há mais de 30 anos, estava listada como diretora suplente da empresa.

Carlinda, que se apresenta como escritora, palestrante e compositora, está à frente de projetos sociais da Igreja Universal há mais de três décadas.

Filiada ao Republicanos (ex-PRB) desde 2016, ela foi candidata, nas eleições de 2018, à suplência do Senado na chapa de José Tripoli (PSDB). Nas urnas, seu nome foi registrado como “Pastora Carlinda”.

A outra parte do investimento, argumentou Cis, teria sido obtida por um empréstimo de US$ 8,7 milhões, em setembro de 1999, feito pela financeira uruguaia Overland S.A., propriedade do contador Rubén Weiszman.

O uruguaio não era um desconhecido da Justiça: em 2011, ele foi condenado a dez anos de prisão por lavagem de dinheiro, após uma investigação que ligou seu nome a empresas utilizadas para ocultar a origem de dinheiro do tráfico de drogas no Uruguai.

As particularidades do contrato chamaram a atenção: o empréstimo foi oficializado em uma folha sem timbre, não especificava prazos de vencimento nem contemplava taxa de juros.

E, embora tenha sido firmado na Argentina, Weiszman não fixou nenhum domicílio no país. O reembolso do empréstimo se concretizou em transações entre 2000 e 2001, segundo o documento ao qual a reportagem teve acesso.

O relatório da UIF sobre a Igreja Universal na Argentina indicou dezenas de depósitos em dinheiro feitos nas contas da igreja entre 1º de junho de 2010 e 1º de setembro de 2014.

Segundo o documento, as transferências foram feitas por pastores ou colaboradores da igreja e somam 831 milhões de pesos argentinos (quase US$ 100 milhões, no câmbio da época).

O montante dos depósitos, segundo os documentos preliminares da investigação, teria sido utilizado em operações financeiras como compra de veículos, de imóveis na Argentina e de um avião, em 2010.

A aeronave Cessna Citation X Modelo 750, com matrícula LV-CEP, foi retida em 2012 no Aeroporto Internacional de Campinas, interior de São Paulo, ao desembarcar a tripulação sem apresentar nome e endereço do proprietário, o relatório das últimas entradas no Brasil desde 2010 e o contrato de hangar para o avião. Avaliado em R$ 13 milhões, o jato foi levado a leilão pela Receita Federal do Brasil.

Paraísos de dinheiro e fé

A investigação transnacional “Paraísos de Dinheiro e Fé” foi coordenada pelo Clip, o OCCRP [sigla em inglês para o Projeto de Relatório sobre Crime Organizado e Corrupção, consórcio de centros de investigação fundado em 2006] e o programa em jornalismo investigativo da Universidade Columbia (Columbia Journalism Investigations, conhecido como CJI em inglês), em parceria com nove veículos de comunicação da América Latina.

Em outubro de 2019, a Pública e a Folha noticiaram, também no marco da investigação, que a ação que investigava por lavagem de dinheiro o bispo Edir Macedo, líder e fundador da Iurd, havia prescrito, sem uma sentença para o caso.

O processo era uma das principais investigações que envolviam Macedo em crimes financeiros.

O líder religioso e outros três integrantes da igreja também haviam sido denunciados, no mesmo processo, por outros dois crimes: envio ilegal de remessas de dinheiro ao exterior e formação de quadrilha –mas essas acusações também foram consideradas prescritas.

Colaborou Flávio Ferreira

A investigação Paraísos de Dinheiro e Fé foi realizada em conjunto pelo programa em jornalismo investigativo da Universidade Columbia (Columbia Journalism Investigations, conhecido como CJI em inglês), Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (Clip, na sigla em espanhol), OCCRP (Projeto de Relatório sobre Crime Organizado e Corrupção, do inglês), Mexicanos Contra la Impunidad y Corrupción (México), Nómada (Guatemala), Canal 13 Noticias (Costa Rica), IDL-Reporteros (Perú), Infobae (Argentina), Agência Pública (Brasil), Folha de S.Paulo (Brasil), La Diaria (Uruguai), El Tiempo (Colômbia).

Com reportagem de Mariel Fitz Patrick, Raúl Olmos, Rute Pina, Flávio Ferreira, Martha Soto, Mercedes Agüero R, Andrés Bermúdez, Asiel Andrés e Nathan Jaccard

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