Investigações pelo mundo mostram igrejas que abusam da liberdade religiosa para lavar dinheiro

Apuração de consórcio de veículos indica como crime organizado explora benefícios concedidos a igrejas para operar negócios fraudulentos

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Rebekah Ward Beatriz Muylaert Matthew Albasi Giannina Segnini
Nova York

“Estou cansada das drogas, das terapias e tudo o que me fizeram”, disse uma mulher morena apoiada em duas muletas. O pastor Jorge estava agachado na beira do palco enquanto lhe estendia o microfone. Em seguida, bradou: “Mas hoje Cristo veio com sua mão poderosa, com um sopro a libertou das muletas. Dêem glória a Deus! Pegue suas muletas, levante-se da cama e ande”.

O vídeo que documenta o culto de cura, publicado no YouTube em 2012, mostra em seguida outro fiel que, exibindo seu braço esquerdo, pega o microfone. “Eu tinha uma dor forte aqui. Quando o pastor orou, senti um imenso calor e ele começou a tremer”, diz.

O “pastor Jorge” que despertava tanta devoção nos fiéis é Jorge Mercedes Cedeño. Ele tinha sua própria igreja chamada El Rugido del León (O Rugido do Leão), no leste da República Dominicana. O Rugido do Leão também estava presente na Colômbia, e o dominicano visitou o país em diversas ocasiões como pregador convidado, segundo notícias da época. O dominicano também era membro da ONG Organização Paz Colombiana, presidida pelo pastor colombiano Orlando Arce Ortiz, que dizia ser bispo anglicano e era líder de outra igreja no país.

Os dois foram presos pela polícia colombiana em maio de 2015, suspeitos de lavagem de dinheiro por meio das igrejas e da ONG. A Procuradoria-Geral da Colômbia depois acusou o “pastor Jorge” de “ter usado seu papel de líder religioso para adquirir bens no exterior em troca de grandes quantidades de dinheiro que foram enviadas ao seu país como supostas oferendas de fiéis”.

Arce Ortiz foi acusado de administrar a logística, a documentação e as conexões políticas nas operações de lavagem de dinheiro.

Ambos se declararam responsáveis por administrar as finanças e comprar propriedades para Los Urabeños, um grupo liderado por Dairo Antonio Úsuga David, conhecido como "Otoniel". Atualmente chamado de Clã do Golfo pelo governo colombiano, trata-se de uma das organizações criminosas mais perigosas da Colômbia, com cerca de 1600 membros e responsável por centenas de sequestros e assassinatos de civis inocentes, segundo informações da polícia.

​Os dois homens criaram uma religião e enganaram fiéis que acreditavam honestamente em seus milagres para lavar o dinheiro sujo e manchado de sangue da rede de traficantes de drogas e de violações de direitos humanos da Colômbia. Regras frouxas ou inexistentes que protegem religiões permitiram a essa rede internacional ficar impune por vários anos.

Este é provavelmente o caso mais extremo de abuso de uma religião e da fé de seus seguidores encontrado pela investigação transfronteiriça Paraísos de Dinheiro e Fé, mas não é o único.

Columbia Journalism Investigations (CJI), o Centro Latinoamericano de Jornalismo Investigativo (CLIP), OCCRP e nove meios de comunicação da região encontraram vários outros casos —alguns comprovados e outros em investigação— que sugerem que há muitas conexões entre igrejas e líderes religiosos com atividades financeiras ilícitas.

A colaboração jornalística elaborou uma base de dados com casos judiciais recentes que relacionavam lavagem de dinheiro e delitos adjacentes —como tráfico de drogas— com grupos religiosos de quaisquer crenças e denominações nas Américas.

Esta documentação resultou de buscas sistemáticas em fontes especializadas online, fontes públicas e entrevistas realizadas pelos colaboradores com autoridades judiciais dos 11 países. Esse foi o ponto de partida desta história.

O fenômeno criminoso refletido pela base de dados não é, de forma alguma, representativo de todas as igrejas e organizações religiosas do continente americano. A maioria delas presta serviços valiosos para suas comunidades.

No entanto, a análise de casos confirmou que várias congregações estão abusando da confiança de seus fiéis enquanto usam seus centros e espaços de culto para cometer e esconder crimes.

No continente americano, existem leis e práticas que buscam garantir uma proteção especial à liberdade religiosa, para evitar possíveis ingerências indevidas do Estado em seus assuntos. Por esse motivo, limitam a capacidade que qualquer Estado tem de investigar igrejas suspeitas de práticas irregulares.

A vigilância de governos de países laicos como Guatemala, Estados Unidos, Peru e Brasil, a organizações religiosas é mínima, segundo descobriu esta investigação após revisar a legislação destes e de outros países americanos.

Nesses países, as igrejas gozam de isenções de impostos e não precisam prestar contas ao Estado. Como os Estados não interferem em seus assuntos, as entidades religiosas têm maior liberdade para administrar suas finanças que outras instituições sem fins lucrativos.

A igreja imaculada

Nos poucos casos em que líderes religiosos proeminentes foram condenados por lavagem de dinheiro, os chefes de suas organizações –e, na verdade, as próprias igrejas– raramente são igualmente investigados.

Em Utah, nos Estados Unidos, Jacob e Isaiah Kingston, membros de alto escalão de uma ramificação mórmon fundamentalista emergiram de uma batalha judicial com sentenças muito reduzidas após a maior fraude da história do estado.

Um processo criminal federal recente em Salt Lake City, Utah, revelou um esquema fraudulento de mais de US$ 500 milhões, no qual o dinheiro era lavado através das contas da igreja, segundo reportagem da Columbia Journalism Investigations, membro desta colaboração.

O Serviço de Impostos Internos dos Estados Unidos (IRS) estimula a fabricação de combustível renovável, oferecendo incentivos fiscais para aqueles que o produzem no país. O esquema baseado em Utah consistia em simular a produção de combustível renovável, quando na verdade os Kingstons estavam comprando e vendendo o mesmo combustível renovável por meio de uma rede de empresas nacionais e internacionais.

Após essa etapa, a empresa de Kingston, Washakie Renewable Energy, apresentava declarações falsas que a qualificava a receber pagamentos na forma de cheques do Tesouro dos Estados Unidos por seu trabalho de “produção” do combustível.

A Ordem, também conhecida como Cooperativa do Condado de Davis, foi fundada em 1935 e é atualmente dirigida por Paul Kingston. Sua igreja, a Igreja de Cristo dos Últimos Dias —não confundir com a principal ramificação da igreja mórmon, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias— é uma comunidade religiosa muito unida.

Estima-se que tem entre 2.000 e 6.000 membros que vivem na região de Salt Lake City. A Ordem é conhecida por ser uma das poucas denominações mórmons que ainda pratica a poligamia.

Em 2019, dois altos membros da Ordem se declararam culpados de defraudar o governo federal dos Estados Unidos de US$ 511 milhões em pedidos indevidos de créditos de energia renovável. Eles foram condenados em abril de 2020.

Membros da Ordem implicados tiveram seus bens confiscados pelo Estado, mas receberam uma sentença muito mais branda em troca de testemunhar contra um cúmplice que não pertencia à igreja.

Trata-se de Lev Dermen, um armênio-americano veterano do crime organizado com laços com altos funcionários dos governos da Turquia e de Belize e com funcionários corruptos dos Estados Unidos.

À medida que o caso se desenrolava na Corte Federal, antigos membros do grupo continuaram a revelar informações sobre outras fraudes. A seita religiosa foi acusada de roubar fundos de programas federais como a Solicitação Gratuita de Auxílio Federal para Estudantes (FAFSA) e o Programa de Alimentos para o Cuidado de Adultos (CACFA).

No passado, membros da Ordem foram condenados por fraude à assistência social e também por incesto. O dinheiro das fraudes, que foi lavado através da igreja e redistribuído aos mais altos integrantes da Ordem, foi obtido com a ajuda de membros.

Ex-fiéis consultados por CJI, colaborador da investigação, associam esses delitos com uma doutrina conhecida como “sangrar a besta”, por meio da qual os fiéis são incentivados a defraudar o governo dos Estados Unidos, já que, supostamente, ressentem-se da “interferência do governo” na prática da poligamias, que eles consideram um assunto religioso e, portanto, pessoal.

Kent Johnson, porta-voz da Sociedade Cooperativa do Condado de Davis negou veementemente que sigam essa doutrina. ​

Ainda assim, a Ordem segue tendo suas proteções constitucionais garantidas assim como qualquer grupo religioso com status oficial de igreja no país.

Ainda que os membros de alto escalão da Ordem tenham usado contas bancárias da igreja para lavar dinheiro de fraudes, e que dois deles estejam cumprindo sentenças, nem a própria igreja nem seu líder máximo, Paul Kingston, foram acusados. Os procuradores estaduais não responderam a pedidos de informação sobre o porquê de o status da igreja não ter sido afetado nesse caso.

Quando a CJI perguntou à igreja sobre seu papel no esquema de fraude, o porta-voz afirmou: "Que eu saiba, qualquer dinheiro pago a empresas de propriedade de membros da Cooperativa foi por serviços legítimos prestados ou para devolver o dinheiro emprestado ao Sr. (Jacob) Kingston ou entidades relacionadas à WRE". ​

Perguntado sobre por que a igreja manteve sua condição de organização isenta de cobrança de impostos, o Serviço de Impostos Internos (IRS, de sua sigla em inglês) respondeu que a lei federal impede a instituição de comentar publicamente sobre contribuintes.

Portanto, a Igreja de Cristo nos Últimos Dias pode continuar atestando a seus doadores que é uma organização isenta de impostos registrada no IRS e que, por se tratar de uma igreja, pode receber doações sem precisar prestar contas de suas finanças ao governo.

Narcos, políticos e pastores

Esta investigação também constatou que na costa de San Marcos, na Guatemala, onde o narcotráfico é poderoso e constitui uma das principais atividades econômicas, existe uma estreita relação entre esse fenômeno e alguns pastores evangélicos.

Há narcotraficantes evangélicos que financiam igrejas, que são eles mesmos pastores dessas igrejas ou que recrutam pastores para utilizá-los em suas organizações.

Juan Alberto Ortiz López, conhecido como “Chamalé”, dominou o tráfico de drogas na costa pacífica da Guatemala por duas décadas. Menos conhecido era seu papel de mecenas religioso. Os pastores a quem enviava dinheiro ou materiais para erguer novos templos lhe deram o apelido de “Irmão Juan”.

Juan Alberto Ortiz López, conhecido como 'Chamalé', ao ser extraditado para os Estados Unidos
Juan Alberto Ortiz López, conhecido como 'Chamalé', ao ser extraditado para os Estados Unidos - Nómada

Ele foi especialmente generoso com as igrejas Torre Fuerte, uma rede de igrejas do pastor Noé Mazariegos que se estendia de San Marcos até o estado mexicano de Chiapas. Segundo a procuradoria da Guatemala, Mazariegos, conhecido como “O Apóstolo”, fez parte da organização de Chamalé e foi acusado de ordenar o assassinato de seu cunhado e de outras pessoas que o acompanhavam.

Chamalé e sua organização mafiosa exportaram ao menos 144 mil toneladas de cocaína, segundo a justiça americana, que o condenou em 2014.

O pastor Mazariegos “tornou-se seu braço direito, seu conselheiro para assuntos religiosos e de negócios”, explicou a Nómada, colaborador da investigação na Guatemala, um jornalista e ativista da região, que pediu anonimato por motivos de segurança.

A proximidade de Chamalé com a religião o ajudou a construir sua rota até o poder. Segundo a investigação de Nómada, o traficante de drogas participava frequentemente de eventos cristãos, durante os quais se reunia com prefeitos, políticos e funcionários públicos da região.

Um assessor de campanha de um candidato presidencial nas eleições de 2007, que pediu para não ser identificado, contou que seu candidato chegou a assistir a um ato religioso em Tapachula, no México, a convite de Chamalé.

Chamalé tirou proveito de suas conexões com as igrejas durante seu julgamento nos Estados Unidos. Religiosos o defenderam, alegando que ele havia ajudado suas igrejas e pedindo que fosse libertado. O pastor Raúl Timoteo Méndez López testemunhou que havia recebido uma ajuda significativa do narcotraficante em benefício de sua congregação.

Enquanto Chamalé nunca realmente dirigiu uma igreja do altar, um de seus principais sucessores, Érick Súñiga, conhecido como “El Pocho”, foi, ao mesmo, tempo pastor, político e narcotraficante.

Érick Súñiga, conhecido como 'El Pocho'
Érick Súñiga, conhecido como 'El Pocho' - Reprodução Facebook

Súñiga já era um narcotraficante em ascensão quando se converteu à igreja Bethania e, com seu apoio, foi eleito prefeito de Ayutla, município no departamento de San Marcos, em 2008. Ainda enquanto prefeito, em 2012, ele criou sua própria igreja chamada Ministérios Restauração e Paz, onde pregava.

Seis anos depois, após a visita de um pastor estrangeiro que profetizou que ele deveria deixar de pregar na igreja local para seguir seus objetivos políticos abençoados por Deus, Súñiga deixou de pregar regularmente em sua igreja. No entanto, segundo fontes consultadas por Nómada no local, esta seguiu sendo o centro de sua doutrina e o ajudando a consolidar seu poder na região.

Súñiga, “El Pocho”, entregou-se às autoridades dos Estados Unidos e foi acusado diante de um tribunal federal no Texas de levar cocaína aos Estados Unidos desde 2008.

“Prefeito guatemalteca corrupto acusado no Distrito Leste do Texas”, informa o comunicado de imprensa do Departamento de Justiça dos Estados Unidos de 19 de dezembro de 2019. “O Tesouro sanciona um prefeito guatemalteca”, escreveu a Embaixada dos Estados Unidos na Guatemala.

Érick Súñiga morreu em abril de 2020 sob custódia das autoridades americanas. Embora a causa da morte não tenha sido informada oficialmente, sabe-se que o narcotraficante e pastor tinha câncer de pâncreas.

Os pastores e o narcotráfico da Guatemala não se limitavam apenas à costa do Pacífico. Jorge René García Noguera, conhecido como JR, emergiu como narcotraficante de uma nova geração, discreto e com um negócio de exportação de frutas e leite, na região de Zacapa, a cerca de 150 quilômetros da capital.

Jorge René García Noguera, conhecido como JR, pregando em igreja de Rhema
Jorge René García Noguera, conhecido como JR, pregando em igreja de Rhema - Reprodução Facebook

Estudou para ser pastor, publicou três livros sobre o cristianismo e chegou a criar sua própria produtora multimídia de conteúdos cristãos. Com o ministério, cultivou relações com outras igrejas do país, como a Chuvas da Graça, e igrejas no exterior, entre elas uma fundada por seus familiares no Peru.

Mas seu projeto não durou muito. No fim do mesmo ano, um tribunal da Flórida o acusou de ser intermediário de narcotraficantes colombianos e mexicanos na rede de tráfico de cocaína para o norte e pediu sua extradição. Um ano depois, ele se entregou voluntariamente nos Estados Unidos e hoje cumpre uma sentença de 20 anos, que pode ser reduzida caso ele colabore com a justiça.

Chama a atenção o fato de que, na Guatemala, apenas um líder religioso tenha sido condenado por lavagem de dinheiro através de sua igreja. Saturnino Molina, um frade franciscano de El Salvador, que foi pego tentando ir até Israel com uma soma de mais de US$ 16 mil em notas de dólar, euro e quetzal. Apesar de ter sido condenado, o frade sempre alegou que o dinheiro não declarado era fruto da venda de rosários e das doações de seus fiéis.

A investigação Paraísos de Dinheiro e Fé foi realizada em conjunto pelo programa em jornalismo investigativo da Universidade Columbia (Columbia Journalism Investigations, conhecido como CJI em inglês), Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (Clip, na sigla em espanhol), OCCRP (Projeto de Relatório sobre Crime Organizado e Corrupção, do inglês), Mexicanos Contra la Impunidad y Corrupción (México), Nómada (Guatemala), Canal 13 Noticias (Costa Rica), IDL-Reporteros (Perú), Infobae (Argentina), Agência Pública (Brasil), Folha de S.Paulo (Brasil), La Diaria (Uruguai), El Tiempo (Colômbia).

Com reportagem de Mariel Fitz Patrick, Raúl Olmos, Rute Pina, Flávio Ferreira, Martha Soto, Mercedes Agüero R, Andrés Bermúdez, Asiel Andrés e Nathan Jaccard

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