'Não quero deixar o país, só me livrar do terror', diz artista que criou marca da oposição na Belarus

Em entrevista à Folha, Antonina Slobodchikava diz que fazer arte em seu país é como estar em guerra

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Minsk (Belarus)

“Ganhou o mundo, mas na minha sala não consigo achar”, brinca a artista plástica Antonina Slobodchikava, enquanto vasculha a estante cheia de pinturas, livros e objetos em seu apartamento no centro de Minsk, capital da Belarus.

Após cinco minutos, ela desiste e puxa de uma pasta o rascunho em papel sulfite do que se tornou o símbolo da principal campanha de oposição à ditadura bielorrussa, a da candidata independente Svetlana Tikhanovskaia.

O desenho de um coração, um punho cerrado e uma mão em sinal de V (de vitória) estilizados foi feito de impulso, sem pretensão de servir à frente de oposição.

Acabou viralizando e se materializando em bandeiras, balões e camisetas dos manifestantes que saem às ruas da Belarus desde o dia 9 de agosto, em protesto contra a reeleição do ditador Aleksandr Lukachenko.

Cartaz mostra a candidata, de camiseta branca e cabelo solto, com os símbolos de coração, pulso cerrado e sinal de V
Símbolos desenhados pela artista plástica Antonina Slobodechikava em cartaz de campanha de Svetlana Tikhanovskaia, principal candidata da oposição contra o ditador Aleksandr Lukachenko na eleição da Belarus - Folhapress

A bielorrussa casada com o também artista contemporâneo Mikhail Hulin e mãe de uma garota de 14 anos, diz que acompanhava a campanha como quem assiste a uma série de TV cheia de reviravoltas.

Num dos capítulos, duas donas de casa e uma flautista decidem se unir e levar adiante as campanhas de candidatos derrubados por Lukachenko. Dos gestos de cada uma (que significam “eu acredito”, “eu posso” e “eu vencerei”) veio a inspiração para a futura marca eleitoral.

Morte e medo sempre foram temas das instalações de Slobodchikava, mas desde que começou a repressão brutal da ditadura contra os manifestantes ela diz sentir um terror constante e inconsciente.

Ao mesmo tempo, a necessidade de participar do momento do país a levou a subscrever com centenas de artistas uma carta aberta condenando a violência e pedindo novas eleições justas.

Na noite seguinte, em meio à mudança de parte de seus pertences para um novo ateliê e ao lado de seus dois cães fox terrier, ela falou à Folha sobre como viver sob um regime autoritário afeta a arte e a cultura e quais suas perspectivas para o futuro.

*

Como surgiu o símbolo de campanha?
Não sou de soluções muito rápidas, mas essa veio de dentro, com muita força. Me inspirei na história de cada uma delas, como se fosse uma guerra, os soldados estão caindo, as bandeiras estão caindo, e as três tomam as bandeiras e seguem no lugar dos candidatos atingidos.

Postei o desenho numa rede social falando sobre esse sentimento e Maria Kalesnikava [uma das três líderes da frente de oposição] pediu permissão para usá-lo.

Com a repressão violenta que ocorreu nas últimas semanas, arrependeu-se de ter ficado em evidência por causa do símbolo da campanha?
Não me arrependi porque é minha arte, mas tenho medo de que o governo venha atrás de mim.

Ao mesmo tempo, sei que ninguém me pagou, estou com a consciência tranquila. Foi fruto da minha inspiração.

Estou com muito medo da polícia e da Omon [tropa de choque], um pavor muito forte, inconsciente. Mas participo de manifestações coletivas, pois me sinto mais protegida.

Tenho perguntado aos entrevistados se posso publicar seu nome completo ou preferem de outra forma.
Pensei sobre isso hoje. Muitos estão vivendo uma paranoia no país, com medo de que as autoridades saibam nossos nomes.

No futuro, assim como existe a ‘síndrome de Estocolmo’ [quando sequestrados desenvolvem vínculo com seus captores], vai existir a ‘paranoia bielorrussa’. É uma verdadeira epidemia [de problemas] de saúde mental.

Onde mais você vê essa síndrome?
Semana passada fiquei muito preocupada com os presos e torturados e, com minha filha e marido, fizemos um ato no palácio das Artes.

Em um dado momento hesitei, porque é contra a lei. Então pensei “o que é a lei, afinal?”. Se as pessoas podem ser presas por qualquer motivo, qual o limite da lei? Disso vem a paranoia bielorrussa: não sabemos mais quando, onde nem por que podemos ser presos ou processados.

Saímos para a rua e queremos ser alguém com direito de pensar, de falar, mas não sabemos se seremos capazes.

É um sentimento novo na Belarus?
Existia sempre uma ansiedade de se expressar, que virou uma grande depressão, e nos acostumamos com isso.

Sabíamos exatamente quais os círculos em que poderíamos conversar abertamente.

Agora vivemos uma situação ambígua. Há uma inspiração gigantesca, mas, ao mesmo tempo, um medo enorme de sermos esmagados sem que possamos fazer nada.

Há um ex-ministro da Cultura [Pavel Latushka] e uma escritora premiada [a prêmio Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévich] no conselho de transição criado pela oposição. A classe artística bielorrussa pode liderar o processo? 
É importante a participação de artistas, mas sinto que o conselho não está bem balanceado. Há muita gente de humanidades, políticos, mas precisamos agora mais de trabalhadores do que de artistas.

Já participava da política antes desta eleição?
Desde 1994 sinto que talvez possamos mudar. Por isso fiquei no país.

A opção pela arte contemporânea faz parte disso?
Sempre estive interessada por uma arte interativa e não conformista [movimento que se desenvolveu fora do realismo socialista soviético e cresceu após a morte de Josef Stálin].

Queria falar com os do outro lado e me expressar como na União Soviética dos anos 1970.

Não estava satisfeita com o sistema de educação e comecei com meu marido a fazer arte contemporânea nos anos 2000, quando ela não era nada comum na Belarus.

Apesar de incomum, era valorizada?
Era e ainda é marginalizada pelo Estado. Fazemos isso há 16 anos, agora começamos a construir uma comunidade, há uma segunda geração de arte contemporânea no país, mas até na academia encontramos resistência.

Nossas escolas pararam no começo do século 20. O avant-garde [arte de vanguarda, que rompe modelos] é tema controverso entre professores.

A resistência é ideológica?
As raízes estão na escola, não aprendemos história da arte, os bielorrussos não sabem nada sobre o assunto.

Eu e Mikhail começamos a explicar pela internet que instalações também são formas de arte, embora os mais velhos não entendam tanto. Para nós, é uma forma de iluminar as pessoas.

Atuar por 20 anos sob um Estado autoritário influenciou sua atuação artística?
Certamente. Sentimos a pressão, e isso é expresso em nossa arte. Nunca tivemos a experiência de criar sem estar sob essa pressão, e como trabalho com fenômenos humanos, com questões existenciais, você sente isso até fisicamente.

Me sinto numa guerra, com uniforme de soldado, lutando contra a parede, tendo que quebrá-la todo o tempo. São sentimentos que nunca saem de você.

Amigos nossos que vivem fora dizem até ter inveja, porque lutamos com problemas reais. Não precisamos inventar problemas. Estamos sempre forçando os limites, esticando a corda todo o tempo.

Acha que vai conseguir quebrar a parede agora?
Temos esperança de que mude, porque queremos tanto… Sinto que estamos assentando trilhos para o futuro, esse trem que ainda está muito lá atrás.

Também nos sentimos como alguém que quer doar um rim, mas o paciente o rejeita. Queremos doar nossos rins para o país, mas esse corpo nos rejeita. Já me perguntaram muito por que não vamos para a Alemanha ou Holanda, onde temos muitos amigos.

Por que não vai?
Se a situação voltar ao que era, penso em deixar o país. Não quero fazê-lo, porque não quero viver como meus amigos, em permanente expectativa da hora em que poderão voltar, e sinto que sou necessária aqui. Por outro lado, tenho uma filha, e não sei se estou fazendo o suficiente por ela.

E o regime impõe limites até à nossa arte. Nos últimos dois anos, Mikhail foi proibido de fazer performances na cidade. Dizem que é proibido fazer manifestações políticas.

Ele passou a fazer as performances na floresta e gravá-las. Porque na verdade tudo o que fazemos é político, cada gesto, palavra, ação. Ir para as ruas agora já é político, podemos ser presos.

Qual seu sonho para o futuro?
Percebi recentemente que até este verão eu não sonhava; me esqueci de sonhar, e agora sonho que podemos ter respeito, amor, entendimento, que podemos viver numa sociedade em que esses valores sobrevivem.

A política pode ser suja, há chantagem, corrupção, mas a oposição me fez acreditar.

Meu sonho distante é que os bielorrussos parem de querer que seus filhos deixem o país para estudar. Seria ótimo se pudessem ficar aqui e se construíssemos algo diferente.

Se for possível, quero ficar livre deste terror. O tempo todo tenho que considerar quais palavras que devo usar, com quais pessoas eu falo, há o tempo todo este medo inconsciente, que queria não sentir mais. Nunca mais.


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