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O fim do uribismo?

Uma vez que a cabeça seja removida, o projeto hegemônico do ex-presidente da Colômbia continuaria com dificuldade

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Carlos Andrés Ramírez
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A Colômbia aderiu recentemente à onda de julgamentos de ex-presidentes na América Latina. O caso, entretanto, é único.

Não se trata, aqui, da abertura de um processo jurídico com espírito de vingança no contexto da chegada de uma nova força política ao governo. Também não se trata do resultado, tal como se propõe agora no México, de uma iniciativa partidária, com amplo apoio popular para processar os ex-líderes.

Álvaro Uribe, de fato, como todos os ex-presidentes colombianos, estava juridicamente blindado e conta com um apoio popular decrescente, mas significativo.

Se não fosse o fato de, em 2013, o líder do Centro Democrata ter decidido concorrer ao Senado para arrastar a lista de seu partido, o processo que ele enfrenta atualmente no Supremo Tribunal de Justiça não teria sido possível.

Além disso, se não fosse pelo fato de Uribe ter decidido denunciar o senador Iván Cepada por uma suposta manipulação de testemunha, não teria sido descoberto, no decorrer das investigações, que era ele mesmo que estava cometendo esse crime. Com base nisso, o tribunal o considerou culpado de fraude processual e suborno.

Dessa soma de improbabilidades parece derivar mudanças significativas na política colombiana.

O uribismo, cuja existência precede o partido Centro Democrático, tem sido um projeto político bem-sucedido, embora não invulnerável, nas últimas duas décadas.

Em Bogotá, homem tira foto de imagem em mural do ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe
Em Bogotá, homem tira foto de imagem em mural do ex-presidente da Colômbia Álvaro Uribe - Juan Barreto - 21.ago.2020/AFP

O sucesso de Uribe se deve, acima de tudo, à sua política de Segurança Democrática. Sua promessa de liquidar os guerrilheiros não foi consumada, mas ele os enfraqueceu fortemente em termos militares.

Dessa promessa cumprida, juntamente com a retórica de “ordem” e “lei”, vive, em termos eleitorais, o uribismo.

O sucesso de Uribe, em termos de vários indicadores da qualidade da democracia, teve, no entanto, custos elevados:

- o envenenamento do debate político com um discurso inflamatório e polarizador, e a criminalização simultânea de todas as formas de oposição e protesto social;

- o uso sistemático da “propaganda negra” como estratégia de mobilização;

- o assédio e a espionagem de líderes da oposição, ativistas sociais e jornalistas;

- o desrespeito aos direitos humanos materializado nas 2.500 execuções extrajudiciais decorrentes da política de incentivos estabelecida para aumentar o número de “baixas” na guerrilha e, também, na promoção de uma política sistemática de encobrimento das ações ilegais de membros das Forças Armadas;

- a inegável e, até a última campanha presidencial, muito viva interação entre as forças paramilitares, às vezes ligadas ao tráfico de drogas, e as forças políticas visíveis;

- a proteção da política de clientelismo.

Resumindo: nada muito encorajador.

O uribismo, no entanto, descreve a si mesmo como um verdadeiro defensor da “democracia”. Como todos os termos políticos, democracia é um termo cujo significado é parte da controvérsia política.

Para o uribismo, está associado ao “anticomunismo” (porque só a esquerda impõe “ditaduras”), a um “nacionalismo” homogeneizador encarnado em seu caudilho (os seguidores de Uribe usam frequentemente camisas da seleção nacional de futebol para expressar solidariedade com seu líder) e a uma compreensão formalista e difusa da defesa da “Lei” (a lei não é, na realidade, a Constituição ou os direitos nela estabelecidos, mas é sinônimo de uma sociedade “ordenada”, na qual nenhuma conduta ilegal deve ficar impune e na qual, sobretudo, a propriedade privada é respeitada sem restrições).

O aspecto “democrático” reside no fato de serem as maiorias, desde que sejam representadas pelo caudilho e sejam suficientemente homogêneas, que definem o que é coletivamente aceitável.

O uribismo associou isso ao chamado “estado de opinião”: uma espécie de democracia plebiscitária que, em sua opinião, deveria estar acima da própria Constituição.

É uma espécie de cesareanismo democrático com características claramente antiliberais: desprezo pelo pluralismo e tolerância, desprezo pela divisão de poderes, desprezo à letra da lei, desprezo por qualquer reivindicação dos direitos humanos (porque isso é “comunista”).

O paradoxo do uribismo reside, no entanto, no fato de que sua repetida transgressão das leis reais é feita em defesa da vigência, no abstrato, da Lei. Esse é o paradoxo que Carl Schmitt associou ao conceito de “estado de exceção”: para defender, em certas circunstâncias, o espírito da lei, se requer governantes que possam violar sua letra. Isso pode variar, dependendo do grau de radicalismo de seus apoiadores, desde restrições à liberdade de imprensa até o assassinato de líderes da oposição.

Nas redes sociais uribistas, nunca questionadas ou problematizadas por Uribe ou pelo subpresidente Duque, isso não é um tabu. O uso da violência contra cidadãos que não pegam em armas é, para muitos seguidores de Uribe, uma parte indispensável da defesa da democracia.

O escândalo da sua prisão domiciliar representa, para muitos dos seus seguidores, uma forte colisão com o modelo da legitimidade de certas ilegalidades. Para os mesmos, Uribe deveria ser imunizado contra toda “perseguição” legal, pois ele é a própria encarnação da vigência da Lei –não da sua letra.

Muitos dirão: “Sim, uma interceptação ali, outra aqui; um pacto com forças paramilitares, sim, talvez; algum truque para se reeleger, talvez, certo. Mas isso era necessário: se tratava de salvar o país”.

Muitos empresários, que foram favorecidos em termos de segurança e em termos de impostos pelos dois governos de Uribe, provavelmente pensam dessa maneira. É por isso que eles o apoiaram em massa.

Uma eventual condenação não apenas representaria uma intensificação do declínio de um político poderoso, mas um duro golpe para um modelo de ordem política do qual ele é visivelmente o cabeça.

Embora o desenvolvimento do processo seja incerto, já que após a renúncia de Uribe ao cargo de senador não se sabe se ele permanecerá nas mãos da Suprema Corte, uma decisão dos juízes que vá contra suas expectativas não teria, portanto, apenas valor judicial.

Uma vez que a cabeça seja removida, o projeto hegemônico de Uribe continuaria com dificuldade. No entanto, seria errado conceber uma eventual decisão como o fim do uribismo.

Por um lado, os apoiadores de Uribe e os congressistas de seu partido anunciaram que defenderão seu líder com unhas e dentes, mesmo que isso inclua desafios à ordem constitucional e possíveis atos violentos por parte de setores radicais.

A senadora Paola Holguín, por exemplo, convocou a reserva ativa do Exército para defender o ex-presidente. Os defensores da excepcionalidade já não contam as maiorias, mas estão dispostos a arrastar o país para o caos total em seu nome.

Por outro lado, mesmo que Uribe seja condenado e os ataques da direita sejam contidos para garantir a impunidade de seu líder, o uribismo continuará movendo um setor significativo da população.

Fujimori, um político semelhante a Uribe, foi condenado no Peru a 25 anos de prisão e, apesar da acumulação de evidências e da gravidade dos crimes cometidos, o fujimorismo prossegue sendo uma força política poderosa no Peru. Keiko Fujimori, em 2016, chegou perto de ganhar a Presidência.

Na Colômbia, já se fala da possível candidatura presidencial de Tomás Uribe, o filho mais velho de Álvaro Uribe.

Carlos Andrés Ramírez é filósofo, cientista político, professor assistente no Departamento de Ciência Política da Universidad de Los Andes (Colômbia) e doutor em filosofia pela Ruprecht-Karls Heidelberg Universität (Alemanha).

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que dissemina diferentes visões da América Latina.

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