Série de reportagens nasceu como 'Um mundo de muros' das drogas

Viagens e publicação foram congeladas pelo surgimento da pandemia do coronavírus

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São Paulo

"E se a gente fizesse 'Um mundo de muros', só que sobre drogas?"

Assim surgiu a ideia para a série de reportagens Estado alterado, em conversa com meu pai, Marcelo Leite, colunista desta Folha. Por coincidência, nós dois nos interessamos profissionalmente pelo assunto; eu mais pelo lado das políticas públicas e de estado, ele escrevendo sobre pesquisas com psicodélicos para tratar males como depressão e estresse pós-traumático.

Cristina Carpanzano, 67, recepcionista do dispensário Lightshade na cidade de Denver, Colorado, nos Estados Unidos
Cristina Carpanzano, 67, recepcionista do dispensário Lightshade na cidade de Denver, Colorado, nos Estados Unidos - Danilo Verpa/Folhapress

Marcelo e minha editora, Luciana Coelho, acreditaram desde o início no projeto. Com ajuda deles, a pauta foi ficando mais clara: em vez de só relatar o problema das drogas em diferentes nações, a ideia passou a ser mostrar como o Estado em cada local trata as substâncias, do ponto de vista da legislação, da justiça, da saúde pública e da regulação.

O interesse nasceu em grande parte por vermos que a discussão sobre as drogas ilícitas pouco ou nada andava no Brasil, enquanto outros países faziam experimentos de legalização ou mudavam políticas públicas.

Movimentação nos dispensários Lightshade (alto) e Seedandsmith (acima) na cidade de Denver, nos Estados Unidos - Fotos Danilo Verpa/Folhapress

O Canadá e o Uruguai, por exemplo, legalizaram a maconha em nível nacional para uso recreativo; 11 estados americanos também o fizeram. Na Europa, onde a discussão sobre redução de danos é mais antiga, países tratam usuários de entorpecentes fora do sistema de justiça penal, mantendo a questão na alçada da saúde pública.

Também há, claro, países que se movem na direção oposta: nas Filipinas, a guerra às drogas defendida pelo presidente Rodrigo Duterte é responsável por milhares de execuções extrajudiciais por ano, como mostraram reportagens de Ana Estela de Sousa Pinto em 2017. A política é defendida por grande parte pela população.

Na Indonésia, onde o tráfico de drogas pode ter como pena a morte, dois brasileiros foram executados em 2015.

Pensamos que mostrar as experiências, de sucesso ou não, de outros países leve o brasileiro a debater o tema, em um país em que um em cada quatro brasileiros relata ter um familiar próximo envolvido com drogas, como mostrou pesquisa Datafolha em 2019.

A violência, muitas vezes relacionada ao tráfico de entorpecentes, também é uma triste realidade no país, custando a vida de mais de 42 mil pessoas no ano passado.

A Direção do jornal também gostou da ideia da série de reportagens e nos deu o sinal verde; repórteres do jornal começaram a fazer as viagens para os diferentes países no início de 2020.

Faltavam algumas viagens e nos aproximávamos do início da publicação quando veio a pandemia do novo coronavírus. Com toda a equipe do jornal voltada a essa gigantesca e imprescindível cobertura, a série foi adiada.

Alguns meses depois, foi possível retomá-lo, com modificações, já que não há agora como fazer de forma segura algumas das viagens que não tinham sido realizadas antes da pandemia.

Não há dúvidas de que a tragédia das mais de 115 mil mortes pelo coronavírus é uma das maiores que o Brasil já enfrentou. Mas, depois de mais de cinco meses de pandemia, fica claro que algumas coisas não pararam: dependentes químicos seguem usando entorpecentes; o tráfico se mantém vendendo e funcionando; a violência relacionada à guerra às drogas continua a ceifar vidas.

Nada mudará se nós, como sociedade, não estivermos dispostos a questionar o senso comum que diz que a única solução possível é prender traficantes, apreender drogas e internar usuários à força. Olhar para o que fazem outras nações com seriedade e sem deslumbramento pode ser o início dessa conversa.

O subxerife Steve Singleton durante visita da Equipe de Resposta Rápida a Opioides no condado de Clermont, Ohio, nos EUA
O subxerife Steve Singleton durante visita da Equipe de Resposta Rápida a Opioides no condado de Clermont, Ohio, nos EUA - Danilo Verpa/Folhapress

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