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A América Latina caiu em uma espécie de realpolitik

Prevalecem os interesses nacionais, com acordos transacionais cuja única referência é a correlação de forças

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​Esteban Caballero

Cientista político, ex-diretor regional para a América Latina e o Caribe do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA)

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Durante o superciclo eleitoral 2017-2019, a América do Sul vivenciou um "giro à direita".

Com exceção da Argentina, os governos progressistas deram lugar a uma nova onda neoliberal.

O Equador viveu uma experiência "sui generis", pois o giro ocorreu mais durante a administração do presidente Lenin Moreno do que como um resultado imediato das eleições.

Durante as campanhas, tanto nos debates presidenciais quanto nas entrevistas com os candidatos, as questões nacionais foram prioritárias. Mesmo assim, certos aspectos das relações internacionais foram abordados e houve divergências sobre a questão da Venezuela e da integração latino-americana.

A direita estava mais concentrada em reconhecer a presidência de Juan Guaidó e negociar a "saída" de Nicolás Maduro e seu governo, enquanto a esquerda estava mais inclinada a uma transição negociada que implicava o reconhecimento de ambas as partes como interlocutores válidos.

Do mesmo modo, a direita rejeitava os processos de integração regional considerados "ideologizados", como Unasul, Celac, Alba e, em menor grau, o Mercosul, enquanto a esquerda não conseguiu articular uma alternativa que reconhecesse os detalhes destss processos de integração, mas, ao mesmo tempo, fosse capaz de proteger o espírito integracionista.

Atualmente, com esses governos entrando nos diferentes períodos de gestão, nos perguntamos qual é o balanço. A primeira impressão é que a integração passa por um de seus piores momentos e que não há sinal de uma breve saída de Maduro.

A eleição do candidato estadunidense Mauricio Claver-Carone como presidente do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), ignorando a regra não escrita de que tal função deveria ser exercida por um latino-americano, é um sintoma do atual colapso do espírito integracionista latino-americano.

O norte-americano Mauricio Claver-Carone, indicado por Donald Trump, foi escolhido para a presidência do BID  (Banco Interamericano de Desenvolvimento)
O norte-americano Mauricio Claver-Carone, indicado por Donald Trump, foi escolhido para a presidência do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) - Noticieros Televisa no YouTube

A região caiu numa espécie de realpolitik na qual prevalecem os interesses nacionais, com acordos transacionais cuja única referência é a correlação de forças.

Iván Duque e Jair Bolsonaro se posicionaram a favor dos Estados Unidos, em troca de vantagens financeiras e políticas, o México manteve sua linha de não importunar seu vizinho do norte, e não houve uma única linha alternativa com poder de negociação.

Assim, o BID se uniu à OEA (Organização dos Estados Americano) por ser o outro grande órgão interamericano afligido pela turbulência pós-eleitoral.

Essa nova tendência perdeu de vista as vantagens a longo prazo da construção de relações internacionais no entendimento de que é melhor ter uma ordem internacional que nos permita enfrentar, de forma conjunta e coordenada, os desafios da modernidade. Desde a pandemia de Covid-19 até o desmatamento e a mudança climática.

Essa é a perspectiva que Ikenberry chama de "internacionalismo liberal" em seu recente trabalho, "A world safe for democracy".

Em contraposição ao realismo político, Ikenberry propõe uma ordem que se incorpora em um sistema de organizações e regras internacionais baseadas em valores e princípios definidos. Valores que incluem a defesa das democracias representativas, dos direitos humanos, da legalidade e das liberdades públicas, assim como uma economia de mercado.

Não uma ordem "neoliberal", mas um liberalismo em evolução que deveria incluir todos os direitos humanos, bem como uma visão do desenvolvimento do capitalismo marcado por fórmulas de justiça redistributiva com plena vigência de sistemas de proteção social sólidos. Onde a importância dada ao comércio internacional não seja um apelo a favor de zonas de livre comércio sem nenhuma regulação, muito pelo contrário.

O caminho escolhido pela direita tem sido o de aspirar ao sucesso transacional, caso a caso. Entretanto a crise da pandemia e a pós-pandemia é tão grave que dificilmente se encontrará uma solução através de tal abordagem. Hoje, mais do que nunca, é necessário entender que o sucesso de cada um depende da vigência de uma comunidade latino-americana.

O cardápio de preocupações na região é muito variado, mas pode-se começar por abordar questões onde há consenso político entre centro-esquerda e centro-direita.

Temas como evasão fiscal, corrupção, segurança do cidadão, formalização da economia, emprego, transição para uma economia baseada no conhecimento, controle dos impactos ambientais, desenvolvimento de infraestruturas, proteção da democracia, Estado de direito e combate ao crime organizado, redução da pobreza e inclusão, entre outros.

Uma série de questões que poderiam ser enfrentadas de uma maneira melhor através de uma ordem que promove o internacionalismo liberal.

Esse é um enfoque de alcance regional que requer um certo tipo de liderança. Uma que se nutre de uma visão do Estado e, portanto, entende que a política externa não é algo que se pode conceber a partir de uma determinada posição política.

O mesmo superciclo eleitoral demostrou que o mundo político sul-americano, e em certa medida latino-americano, se manifesta majoritariamente dentro de um espectro de centro-esquerda à centro-direita. E é esse grande centro político plural que deveria construir uma política integracionista de longo prazo. Um projeto integracionista que perdure os sucessivos governos e partidos.

Finalmente, diríamos que uma parte importante desse esforço político tem a ver com o tratamento da questão da Venezuela. Esse é um dos obstáculos que dividem e impedem que a região avance com um consenso mais amplo. Durante as campanhas, o tema foi utilizado como um divisor de águas político, estabelecendo falsas equivalências entre reconhecer Guaidó e ser a favor da democracia e não reconhecer Guaidó e apoiar o socialismo do século 21.

Juan Guaidó, líder da oposição na Venezuela ao presidente Nicolás Maduro, acena para simpatizantes em Caracas
Juan Guaidó, líder da oposição na Venezuela ao presidente Nicolás Maduro, acena para simpatizantes em Caracas - Manaure Quintero/Reuters

O dilema para a grande maioria das forças políticas, no entanto, é bastante metodológico: Como recompor a democracia na Venezuela?

Em seu recente discurso inaugural na reunião do Grupo de Lima, Iván Duque repetiu que o primeiro dos quatro objetivos do grupo é "dar o fim à usurpação, o fim à ditadura", e a partir disso prosseguir com a transição.

Será este o caso? Se pensássemos nisso em outra ordem, não teríamos melhores chances de fortalecer o alinhamento e o compromisso dos países com o retorno da democracia na Venezuela?

Após o entusiasmo inicial de um ano e meio desde que Guaidó se declarou o legítimo presidente da Venezuela e alcançou um importante reconhecimento internacional, a saída do usurpador tem se distanciado.

Será que é hora de reconsiderar a ordem dos fatores? A questão adquire agora maior relevância à luz das novas divisões dentro da oposição venezuelana.

Talvez tenha chegado o momento de uma mudança de estratégia que reúna uma frente regional mais ampla para propor uma negociação que enfatize a transição para o fim da ditadura e, dessa maneira também deter o agravamento das diferenças políticas na região. Esse seria um passo importante.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que dissemina diferentes visões da América Latina.

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