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As ruas voltam a se fazer ouvir na Colômbia

Incidente similar ao caso Floyd desata indignação contra a polícia; para presidente, abusos são obra de 'maçãs podres'

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​Iván Garzón Vallejo

Professor de ciências políticas na Universidade de La Sabana (Colômbia)

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Sabia-se que aconteceria, mas não sabíamos quando.

As ruas voltariam a se fazer ouvir, em um país onde isso não costuma acontecer: protestar sempre foi um verbo que despertava suspeitas de afinidades com a guerrilha, e os colombianos se caracterizam pela resiliência, uma atitude indispensável para sobreviver ao realismo trágico de Macondo.

E agora, quase um ano depois que o país foi abalado por uma greve nacional na época das festas do ano passado, e pelas manobras governamentais, foi um incidente policial em uma rua de Bogotá, semelhante ao caso de George Floyd nos Estados Unidos, que desatou a indignação acumulada contra uma instituição que, durante os cinco meses de confinamento, foi notícia por suas arbitrariedades.

Javier Ordóñez, estudante de direito e pai de dois meninos, foi assassinado a pancadas por sete policiais uniformizados em uma delegacia, para onde havia sido levado depois de lhe aplicarem diversas descargas elétricas, diante da câmera de um celular, e de o sentenciarem à morte com um fatal “desta ele não se salva”.

Em Bogotá, a capital da Colômbia, homem pinta em muro o rosto de Javier Ordoñez, morto pela polícia e transformado em símbolo da brutalidade policial no país sul-americano
Em Bogotá, a capital da Colômbia, homem pinta em muro o rosto de Javier Ordoñez, morto pela polícia e transformado em símbolo da brutalidade policial no país sul-americano - Daniel Munoz - 10.set.2020/AFP

Abuso policial e protestos de rua

A forma errática como a pandemia foi administrada deixou a Colômbia com uma democracia combalida e um saldo social inédito: desemprego de 20% e 48% da força de trabalho empregada informalmente.

Incapazes de equilibrar os valores políticos em jogo, os governantes justificaram a extensa quarentena com um “estamos salvando vidas”, um artigo de fé que exigia confiança e resolução. Mas chegou a hora de pagar a conta.

Apesar da persistência da anacrônica guerrilha do ELN e dos bandos residuais de criminosos, a Colômbia é a democracia mais antiga e estável da América Latina.

Mesmo assim, e talvez por isso mesmo, sua classe dirigente tende ao imobilismo, a Justiça se nega sistematicamente a passar por uma reforma, e o Congresso e os partidos sofrem forte desprestígio, por estarem associados ao clientelismo e à corrupção.

O fetiche pela lei convive com uma imunidade superior a 90% e uma queda aguda da confiança nas instituições judiciais por conta de sua ineficácia e politização. O predomínio de uma visão estritamente jurídica impede tomar decisões de políticas públicas mais audazes e permitir espaço para a ética e outras disciplinas no diálogo público.

Por isso, para alguns incautos ou cínicos, os anúncios de “investigações exaustivas” e de “tolerância zero” contra aqueles que deixam de lado a lei –como declarou o presidente Iván Duque no caso de Ordóñez– deveriam encerrar qualquer discussão.

"Por que falar de injustiça e desigualdade ou por que expressar solidariedade e compaixão se o que precisamos é aplicar a lei e defender as instituições", parecem pensar muitos dirigentes.

Nesse contexto, quando as ruas falam, muito pouca gente sabe interpretar suas queixas. E com frequência elas nem são escutadas.

Além das suspeitas de motivações insurgentes –reforçadas pelo Ministério da Defesa com supostas informações dos serviços de inteligência sobre complôs nacionais e internacionais– e do imobilismo dos dirigentes, há o fator vandalismo, que faz com que boa parte da elite política, econômica e midiática do país se concentre quase que exclusivamente nos incidentes contra bens públicos e presuma que esse é o aspecto mais relevante das manifestações.

Por isso, mesmo os protestos cidadãos mais justificados, como os causados pelo assassinato de Ordóñez e diversos outros civis pela polícia, não são vistos como uma questão de direitos e democracia, mas como um problema de ordem pública.

Duque, refém da Força Pública

Em junho de 2018, a Colômbia elegeu um candidato inexperiente e quase desconhecido para dirigir os destinos do país. Seu maior êxito, como nas dinastias, foi o de ter sido designado por Álvaro Uribe, o fenômeno eleitoral colombiano mais importante do século, até o momento.

O discípulo, no entanto, demonstrou estar muito distante da estatura de seu mentor. E se seu mestre governava como um general do Exército, o discípulo o faz apenas como um patrulheiro de polícia.

Se o mestre herdou um país em momento mais crítico da ameaça insurgente e diante do abismo de um Estado falido, o discípulo o recebeu pouco depois da assinatura de um acordo de paz e tinha o desafio de levar a presença do Estado a todo o território. Mas não soube como fazê-lo.

Iván Duque tem um livreto para outro país e um discurso só para sua base –incluída a Força Pública–, uma versão do conservadorismo de direita cujo pendor autoritário o leva a exibir como maiores sucessos a aprovação da sentença de prisão perpétua para estupradores de crianças e ter decepado as cabeças dos órgãos de controle.

Populismo punitivo e burocracia, basicamente. E, embora o governo tenha maioria no Congresso, foi incapaz de aprovar qualquer reforma importante, por mais que o país necessite de reformas estruturais na Justiça, na saúde e no sistema de aposentadorias, entre outras.

Como é previsível, um governo com retórica de conflito armado não teve capacidade de interpretar o país que surgiu depois do acordo de paz.

O presidente da Colômbia, Iván Duque, discursa em Bogotá
O presidente da Colômbia, Iván Duque, discursa em Bogotá - Raul Arboleda - 6.mar.2020/AFP

Apesar dos mais de dez mortos e quase duas centenas de feridos nas ruas de diversas cidades durante os protestos, uma situação que Claudia López, a prefeita de Bogotá definiu como “massacre”, e “o problema mais grave surgido em Bogotá desde a tomada do Palácio de Justiça”, Duque persiste em sua defesa intransigente dos policiais, a quem define como “heróis e heroínas”.

Talvez fosse demais esperar que um governo de direita peça perdão sinceramente às famílias de vítimas da violência policial.

Mas é difícil entender que se negue a reformar estruturalmente um Frankenstein institucional: uma instituição civil que é controlada pelo Ministério da Defesa e cujos abusos são julgados –por assim dizer– pela Justiça militar, e segue ancorada na lógica operacional de amigo-inimigo da época do conflito armado.

Mas, mesmo deixando de lado a questão institucional, a atitude é incompreensível também porque os abusos policiais se tornaram parte da paisagem, e sua desaprovação saltou de 14% em julho de 2008 para 57% em agosto deste ano.

Ainda assim, não se trata apenas de um problema de práxis: o Código de Polícia aprovado pelo Congresso em 2016 conferiu mais poderes aos policiais uniformizados, alguns dos quais muito invasivos das liberdades, como o de ingressar em uma residência sem permissão do morador, ou o de multar cidadãos por beber álcool na rua ou ter uma fachada suja em casa.

Por isso, isolado na Casa de Nariño (o palácio presidencial da Colômbia), onde governa apenas com seus amigos de universidade e ex-colegas do BID, e se comunica com o país, desde o começo da pandemia, por meio de um programa de TV diário que faz lembrar o “Alô Presidente” de Hugo Chávez, Duque continua tentando convencer a Colômbia de que os abusos policiais são obra de algumas “maçãs podres”, e expressa, por quantas vezes for necessário àqueles que parecem mantê-lo como refém, sua maior solidariedade e apoio irrestrito.

E assim, onde existem reclamações de cidadãos indignados, ele vê um problema de ordem pública; onde há petições por reforma, ele vê ameaças de desestabilização; e onde há expressões de inconformismo, sua única resposta é “mas do que você está falando, meu velho?”

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que dissemina diferentes visões da América Latina.

Tradução de Paulo Migliacci

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