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Bolívia se vê sem bússola para navegar e com demônios à espreita

Em meio à polarização social e à fragmentação partidária, transição democrática no país tem mais dúvidas do que certezas

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José Orlando Peralta Beltrán

Cientista político da Universidade Autônoma Gabriel René Moreno (UAGRM), em Santa Cruz, Bolívia. Mestre em Administração Pública e Governo Autônomo (Universidad Santiago de Compostela 2009-2010 - Espanha).

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“Este Comitê não descansará até ver atrás das grades estas bestas humanas (índios-ocidente) indignas de serem chamadas de cidadãos; colonos que mordem a mão desta terra (oriente) que lhes abre os braços para sair da pobreza, e eles pagarão por esta afronta.”

Palavras de Rómulo Calvo (presidente do comitê cívico pró-Santa Cruz, instituição civil que reúne várias entidades e representa interesses sociais, políticos e econômicos no departamento de Santa Cruz no leste da Bolívia).

No dia 18 de outubro serão realizadas as eleições nacionais na Bolívia, após um prolongado processo político-eleitoral que durou quase um ano desde as eleições fracassadas de 20 de outubro de 2019.

A polarização social e a fragmentação partidária são duas conotações do processo em um contexto marcado pela pandemia.

Bolivianos participam de manifestação em El Alto para exigir a renúncia de Jeanine Añez, que preside a Bolívia interinamente
Bolivianos participam de manifestação em El Alto para exigir a renúncia de Jeanine Añez, que preside a Bolívia interinamente; haverá eleição no dia 18 de outubro - Mateo Romay - 14.ago.2020/Xinhua

Polarização social. Nos referiremos apenas a duas fragmentações –devido à sua relevância– presentes na Bolívia há muito tempo e que mais uma vez se manifestaram no contexto do processo político-eleitoral de 2020 e explicam a atual polarização social: o ocidente contra o oriente do país, e os brancos contra os índios.

Entendemos como polarização o fato de que a opinião política está bastante distante, as fissuras são profundas, não existe consenso e os discursos extremos representam estruturas cognitivas fechadas e impermeáveis a outros argumentos.

A fragmentação entre o ocidente e o oriente se manifestou com o reaparecimento de um ex-líder camponês, Felipe Quispe (el Mallku), no cenário midiático nacional em sua condição de “comandante dos bloqueios do altiplano” no ocidente do país (La Paz).

Seu discurso político apontava para a reivindicação do Kollasuyo (provém dos que falam o idioma aymara e são habitantes de vários reinos independentes no planalto de Titicaca com fortes laços culturais) e a negação da Bolívia como uma República.

Em suas palavras, “desde 1825 até o atual governo de Añez (presidente interina) temos sido geridos por governos que não são nossos. São estrangeiros, são colonos, são coloniais que vieram da Europa, da Croácia, de outros lugares (que vivem em Santa Cruz). Eles nos governam e nós permanecemos em baixo”.

A presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez, em cerimônia no palácio presidencial, em La Paz
A presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez, em cerimônia no palácio presidencial, em La Paz - David Mercado - 13.mar.2020/Reuters

No que diz respeito à segmentação brancos contra índios, ela foi novamente colocada em debate –no contexto da rebelião da classe média urbana no final de 2019, que levou à queda de Evo Morales– pelo ex-vice-presidente Alvaro Garcia Linera.

Ele escreve: "Quando o processo de mudança introduz outros mecanismos de intermediação eficientes em relação ao Estado, as certezas seculares do mundo da classe média tradicional são abaladas e escandalizadas. A linhagem, a branquitude e os grupos secretos de poder, incluindo sua retórica e estética, são expulsos pelo vínculo sindical e coletivo".

Como descrito anteriormente, o presidente do comitê pró-Santa Cruz, Romulo Calvo (branco), marcou a distância ideológica com um discurso extremo que representa o oposto da declaração de Quispe e o que foi escrito por García Linera.

Fragmentação partidária. Há oito organizações políticas concorrendo nas eleições: Creemos, Juntos, Movimiento al Socialismo (MAS), Comunidad Ciudadana (CC), Acción Democrática Nacionalista (ADN), Partido de Acción Nacional Boliviano (PAN-BOL), Frente Para La Victoria (FPLV), e Libertad y Democracia (Libre 21).

De acordo com as pesquisas de intenção de voto, os quatro últimos grupos políticos não têm apoio social significativo em relação aos demais, portanto não continuarão como objeto de referência.

Para entender a fragmentação partidária no processo político-eleitoral boliviano é pertinente recorrer ao conceito de pluralismo moderado (Giovanni Sartori, 2018).

Esse conceito permite esclarecê-lo e distingui-lo das seguintes conotações: a competição eleitoral entre Juntos (Jeanine Añez), MAS (Luis Arce Catacora), Creemos (Luis Fernando Camacho) e Comunidad Ciudadana (Carlos Mesa) é de baixa intensidade ideológica porque não estão em disputa projetos políticos hegemônicos; todos têm impulsos centrípetos ou procuram se aproximar do centro político –moderação– como indicam seus programas governamentais com relação à prioridade que dão ao Estado e seu papel de ator com a maioria das ações (fortalecimento das empresas públicas) e capacidade de redistribuir bens públicos (vínculos com setores populares), ou seja, a predominância histórica da lógica nacional-popular no raciocínio político dos candidatos e eleitores.

Além disso, não existe uma força política extrema com apoio majoritário e desequilibrado.

De acordo com várias pesquisas de intenção de voto, é muito provável que nenhum partido político alcance a maioria absoluta, como o MAS de Evo Morales alcançou nas eleições anteriores de 2005, 2009 e 2014, e o próximo governo seja uma coalizão entre centro-direita e centro-esquerda.

Os relatos dos partidos políticos bolivianos não dão indícios de um novo horizonte político para a década 2020-2030. As visões curtas e os discursos banais dos candidatos são uma constante no processo eleitoral, o que implica que não existe uma luta pela direção cultural e ideológica entre os projetos políticos.

Existe, entretanto, uma disputa sobre os espaços de poder e a administração dos bens públicos para o benefício de grupos de interesse (elites econômicas).

Se, a partir da teoria, se entende que o objeto da política é o fornecimento de bens públicos para os cidadãos (Josep M. Colomer, 2007), os candidatos e partidos políticos não convencem nesse sentido.

Contudo, surge a suspeita de que no dia 18 de outubro os vencedores abusarão da vitória e os perdedores se tornarão violentos com a derrota.

Uma situação muito provável, considerando as atitudes, comportamentos e interesses em jogo como aconteceu em outubro de 2019, depois que foram descobertas irregularidades na jornada eleitoral e o país, sem um governo, navegou em confusão por dois dias.

Por isso, é necessário que o Supremo Tribunal Eleitoral fortaleça a confiança institucional e os candidatos e militantes se comportem de forma civilizada no final do dia das eleições.

Em resumo, embora as organizações políticas concorrentes tenham o cuidado de abordar a polarização social em suas estratégias discursivas para não perder votos, os diferentes grupos que incorporam as fragmentações refletem uma sociedade com estruturas cognitivas fechadas e impermeáveis a outros argumentos, uma situação que é predominante e preocupante por seu caráter obsessivo.

Uma suposição para terminar. Se a polarização social for incorporada na fragmentação partidária, isso produzirá uma polarização política que pode colocar em maior risco as fracas instituições democráticas da Bolívia. Uma tempestade perfeita, se considerarmos o caráter socialmente trágico da pandemia e a consequente crise econômica.

Por tudo isso, a transição democrática na Bolívia tem mais dúvidas do que certezas, um cenário não necessariamente "sui generis" na América Latina, mas incômodo devido à sua instabilidade política.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que dissemina diferentes visões da América Latina.

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