Cinquenta dias antes da eleição americana, a Folha começou a publicar a série de reportagens “50 estados, 50 problemas”, que se debruça sobre questões estruturais dos EUA e presentes na campanha eleitoral que decidirá se Donald Trump continua na Casa Branca ou se entrega a Presidência a Joe Biden.
Até 3 de novembro, dia da votação, os 50 estados do país serão o ponto de partida para analisar que problemas o próximo —ou o mesmo— líder americano terá de lidar.
Se a série dos anos 1990 “Sex and the City” se passasse em Las Vegas em vez de na cidade de Nova York, uma das quatro mulheres protagonistas teria sido vítima de alguma forma de abuso doméstico, com grandes chances de outra das personagens do quarteto ter passado pelo mesmo.
O estado de Nevada é o segundo em casos de violência sexual, física ou perseguição de mulheres cujo autor é o parceiro —43,8% de suas moradoras já foram vítimas desses abusos, índice acima da média nacional, de 37,3%, de acordo com um estudo do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) divulgado em 2017, com dados de 2010 a 2012. Só fica atrás do Kentucky, com 45,3%.
Com uma taxa tão alta de vítimas, tanto local quanto nacionalmente, o abuso que ocorre dentro de casa é tratado como uma epidemia pela Coalizão Nacional contra a Violência Doméstica (NCADV, na sigla em inglês). Segundo dados da organização, a cada 20 minutos um americano é fisicamente abusado por seu parceiro –se somados os casos de homens e mulheres.
Essa violência, que atinge principalmente indígenas americanas e negras (47,5% e 45,1% já foram vítimas de abusos de seus parceiros, respectivamente), geralmente vem acompanhada de um comportamento controlador e pode resultar em trauma psicológico e, em situações mais extremas, assassinato.
Os casos de feminicídio colocam Nevada entre os líderes nacionais. Por muitos anos, segundo o NCADV, o estado ocupou o topo da lista, caindo para a quarta posição no mais recente relatório do Violence Policy Center, baseado em dados de 2017, com uma taxa de 2,03 vítimas a cada 100 mil mulheres.
Elas eram, em sua maioria, brancas, na casa dos 30 anos, e todas conheciam o assassino. Em nenhum caso cujas circunstâncias puderam ser identificadas houve crime cometido pelas vítimas.
Nacionalmente, a taxa de feminicídios na série histórica vinha em queda desde 1996, atingindo seu nível mais baixo em 2014, quando voltou a subir nos três anos seguintes.
A chance, porém, de todos esses dados serem apenas uma porção da realidade é grande. Apesar de Nevada figurar entre os estados com mais casos de violência e de mortes contra mulheres, ele está apenas na posição 23 no volume de denúncias da linha direta para reportar abusos.
Em 2015, foram 1.791 contatos, tanto por telefone quanto por chat. O maior volume veio de sua cidade mais notória, Las Vegas (69%), e a grande maioria das denúncias foi referente a abusos emocionais ou verbais (95%), seguidos de abusos físicos (71%).
A subnotificação é um problema crônico deste tema. Muitas não se sentem seguras para denunciar, seja pelo contexto em que vivem, muitas vezes sob o mesmo teto do abusador, ou pela falta de acolhida do Estado, desde a polícia até o Judiciário.
No contexto eleitoral, o assunto é pouco comentado diretamente pelos candidatos presidenciais, apesar de denúncias de assédio permearem as biografias tanto de Donald Trump quanto de Joe Biden.
Contra o republicano, a mais recente, entre muitas já feitas, foi a da ex-modelo Amy Dorris, que o acusou de tê-la beijado e tocado sem o consentimento dela durante o torneio de tênis US Open em 1997.
Já contra o democrata, há a acusação de Tara Reade, uma ex-assessora de Biden no Senado. Ela diz que ele a encostou numa parede do Congresso, enfiou a mão sob suas roupas e a penetrou com os dedos em 1993. Ambos os candidatos negam as acusações.
Mas se Trump passa ao largo do tema em sua campanha, Biden apresenta propostas relacionadas diretamente ao tema, como o projeto de expandir a rede de segurança de vítimas e acabar com a fila de exames de corpo de delito ligados a estupros que aguardam análise técnica.
Estima-se que centenas de milhares desses exames estejam armazenados em delegacias de polícia e laboratórios de perícia, o que gera forte lobby de organizações pela finalização dos testes.
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