Descrição de chapéu The New York Times

Como protagonista de 'Hotel Ruanda' foi de herói a preso por terrorismo

Crítico do atual presidente foi levado ao país de forma obscura e alega perseguição

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Kigali (Ruanda) | The New York Times

Como gerente de um hotel cinco-estrelas onde 1.268 pessoas se abrigaram para escapar do genocídio de 1994 em Ruanda, Paul Rusesabagina era conhecido pelo temperamento frio —qualidade que manteve os assassinos a distância, ajudou a garantir a sobrevivência de todos os hóspedes e inspirou um filme indicado ao Oscar, "Hotel Ruanda", que levou sua história ao público global.

Agora Rusesabagina está de volta a Ruanda, mas desta vez sob prisão, em uma cela espartana na delegacia central de Kigali. Ele ainda mantém a figura de um hoteleiro tranquilo —blazer bem passado, camisa branca, mocassins lustrosos— enquanto se esforça para explicar as últimas reviravoltas de uma história de vida que ameaça superar até mesmo sua versão de Hollywood.

Paul Rusesabagina é algemado por policial após pré-julgamento em Kigali, em Ruanda
Paul Rusesabagina é algemado por policial após pré-julgamento em Kigali, em Ruanda - 14.set.20/AFP

Não muito tempo atrás, Rusesabagina, 66, fez sucesso nos Estados Unidos, premiado com a Medalha Presidencial da Liberdade. Recebia altos cachês por seus discursos em todo o mundo —um ícone dos direitos humanos alertando sobre os horrores do genocídio.

Agora, ele se vê em um país ao qual jurou nunca mais voltar, à mercê de um presidente que o perseguiu por 13 anos e preparando-se para ser julgado por assassinato, incêndio criminoso e terrorismo.

"Como cheguei aqui é mesmo uma surpresa", disse ele em uma entrevista na prisão na semana passada, com dois funcionários do governo de Ruanda na sala. "Na verdade, eu não estava vindo para cá."

A história de como um herói de Hollywood passou de embaixador dos direitos humanos a prisioneiro reflete a situação de Ruanda, pequeno país africano onde cerca de 1 milhão de pessoas morreram em 1994 num massacre grotesco que se tornou vergonha mundial.

Um quarto de século depois, o genocídio ainda lança uma longa sombra dentro do país, onde a verdade sobre como o caso se desenrolou é fortemente contestada.

Depois dos massacres, Ruanda foi estabilizada sob a mão firme de Paul Kagame, líder rebelde que se tornou presidente e virou o queridinho dos países ocidentais dominados pela culpa. Kagame ganhou aliados poderosos, como Bill Gates, Tony Blair e Bill e Hillary Clinton. Os doadores esbanjaram ajuda a seu governo, que reduziu a pobreza, fez a economia crescer e promoveu líderes femininas.

Hoje, Ruanda também é conhecido como um Estado autoritário onde Kagame exerce controle total, suas tropas são acusadas de saque e massacres no vizinho Congo, e rivais políticos são presos e submetidos a julgamentos simulados ou morrem em circunstâncias misteriosas no país e no exterior.

O ator Don Cheadle (à dir.) representa o ex-gerente de hotel Paul Rusesabagina em cena de 'Hotel Ruanda' (2004)
O ator Don Cheadle (à dir.) representa o ex-gerente de hotel Paul Rusesabagina em cena de 'Hotel Ruanda' (2004) - Blid Alsbirk/MGM Pictures/Reuters

Em primeiro lugar entre esses críticos está Rusesabagina, que aproveitou a fama mundial para lançar ataques contundentes a Kagame, gradualmente se transformando de ativista em oponente e, como o governo agora alega, apoiador da luta armada.

Rusesabagina era líder de uma coalizão de grupos de oposição, todos no exílio, que inclui um braço armado. Em um discurso a esses grupos em 2018, gravado em um vídeo agora amplamente divulgado pelo governo, Rusesabagina diz que a política fracassou em Ruanda. "Chegou a hora de usarmos todos os meios possíveis para realizar mudanças", disse ele. "É hora de tentarmos nosso último recurso."

Da prisão, ele disse que o papel de seu grupo não era a luta, mas "diplomacia" para representar os milhões de refugiados e exilados ruandeses. "Não somos uma organização terrorista", afirmou.

Durante semanas, o mistério foi como Rusesabagina, um cidadão belga e residente permanente nos EUA, foi atraído de sua casa no Texas para Ruanda. Falando na prisão, Rusesabagina disse acreditar que estava voando para Burundi. Sua família insiste que ele não pode falar livremente.

"Com armas ao seu redor, ele está falando na barriga da fera", disse seu filho, Tesor Rusesabagina, 28, nos Estados Unidos. "E a fera pode morder a qualquer momento."

Santuário cinco-estrelas

O Hotel des Mille Collines, no coração de Kigali, era um santuário cinco-estrelas em uma terra banhada em sangue em 1994.

Enquanto os milicianos hutus se agitavam pelas ruas em um massacre convulsivo, Rusesabagina, um hutu, empregou suas artimanhas e os recursos do hotel de propriedade belga —cerveja, dinheiro e charme— para afastar os assassinos. Ele subornou generais do Exército com dólares e charutos. Ele lutou para proteger sua mulher, Tatiana, uma tutsi.

Do lado de fora do portão, ruandeses foram mortos a golpes, queimados vivos ou fuzilados. Lá dentro, milagrosamente, os 1.268 residentes do hotel sobreviveram.

"Uma ilha de medo em um mar de fogo", disse Rusesabagina certa vez.

Após o genocídio, Rusesabagina voltou a trabalhar. Mas o país estava caótico e tenso. Um novo governo liderado por tutsis, chefiado pelo líder rebelde Kagame, estava no comando.

Dois anos depois, Rusesabagina recebeu avisos de que sua vida corria perigo e seu passaporte poderia ser confiscado. No dia seguinte, a família fugiu para Uganda e, logo em seguida, mudou-se para a Bélgica, antiga potência colonial de Ruanda.

Rusesabagina pediu asilo político, dirigiu um táxi e comprou uma casa nos subúrbios de Bruxelas. Em 1998 sua história foi apresentada em um aclamado relato do genocídio, "Queremos Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias", do escritor americano Philip Gourevitch.

Fora isso, ele viveu na obscuridade.

A estreia em Kigali

O diretor de cinema irlandês Terry George conheceu Rusesabagina em Bruxelas, em 2002, como passageiro em seu táxi Mercedes. O "Hotel Ruanda" de George, lançado em 2004, foi elogiado pela crítica e pela nata de Hollywood.

Na estreia em Los Angeles, Angelina Jolie, Harrison Ford e Matt Damon posaram com Rusesabagina no tapete vermelho. A Anistia Internacional promoveu o filme, que teve três indicações ao Oscar, incluindo o de melhor ator para Don Cheadle, que interpretou Rusesabagina.

Em abril de 2005, para a estreia em Ruanda, George voou dos Estados Unidos para Bruxelas para se encontrar com Rusesabagina e sua mulher para o voo até Kigali. Mas só ela estava no portão de embarque. Rusesabagina se recusou a viajar no último minuto.

"Ele disse que não se sentia seguro", contou George. "Disse que tinha sido avisado para não ir a Kigali."

Em Ruanda, porém, Kagame pareceu gostar do filme. Ele se sentou entre sua mulher, Janet, e George para uma exibição no salão de baile do Hotel InterContinental. Quando o público aplaudiu durante uma cena que mostrou o rosto de Kagame, o presidente riu.

Mas conforme o perfil de Rusesabagina crescia nos EUA o lado de Kagame se eriçava.

Depois que o presidente George W. Bush concedeu a Rusesabagina a Medalha Presidencial da Liberdade, o maior prêmio civil dos Estados Unidos, em novembro de 2005, o jornal ruandês New Times, pró-governo, publicou uma série de artigos atacando o hoteleiro.

George W. Bush, à época presidente dos EUA, concede a Medalha Presidencial da Liberdade a Paul Rusesabagina, em 2005
George W. Bush, à época presidente dos EUA, concede a Medalha Presidencial da Liberdade a Paul Rusesabagina, em 2005 - Jason Reed - 9.nov.05/Reuters

"Um homem que vendeu a alma do genocídio de Ruanda para ganhar medalhas", disse um artigo.

Meses depois, Kagame fez sua própria propaganda. Ruanda não precisava de heróis "fabricados na Europa ou na América", disse.

Depois de "Hotel Ruanda", Rusesabagina vendeu seu táxi, assinou contrato com uma agência de palestras e viajou pelo mundo alertando sobre genocídio.

Em seu país, o conflito com Kagame transbordou.

Rusesabagina publicou um livro de memórias, "An Ordinary Man" (um homem comum), que continha duras críticas à Ruanda de Kagame —"Uma nação governada para o benefício de um pequeno grupo da elite tutsi", escreveu ele. Os poucos hutus no poder eram "conhecidos localmente como hutus de serviço, ou 'hutus de aluguel'".

Uma batalha de narrativas eclodiu.

Voo misterioso para Kigali

Quando ele embarcou em um voo de Chicago para Dubai em 26 de agosto, Rusesabagina forneceu poucos detalhes à sua família. "Reuniões", disse.

A pandemia o separou de sua mulher, presa em Bruxelas desde fevereiro. Ele não pôde visitar um neto recém-nascido perto de Boston.

Mas essa viagem aparentemente valia a pena.

Rusesabagina passou apenas seis horas em Dubai. No aeroporto menor da cidade, ele embarcou em um jato particular que acreditava ir para Bujumbura, no Burundi. Ele pousou pouco antes do amanhecer de 28 de agosto em Kigali, onde foi imediatamente preso.

"Ele se entregou aqui", disse o espião-chefe de Ruanda, brigadeiro-general Joseph Nzabamwita, com um sorriso. "Uma operação maravilhosa."

A Human Rights Watch afirma que sua prisão viola a lei internacional, mesmo que ele tenha sido induzido a embarcar voluntariamente no voo de Dubai.

Abraçando —e temendo— a verdade

Em "Hotel Ruanda", Rusesabagina é retratado como um negociante que usava charutos e bajulação para se livrar dos problemas mais mortais. Agora, confinado em uma cela de prisão a 9 quilômetros de distância, essas opções não estão disponíveis.

Apoiadores, tanto em Hollywood quanto na oposição de Ruanda, argumentam que ele não pode receber um julgamento justo. Rusesabagina, por sua vez, insistiu que seu grupo "não era uma organização terrorista", mesmo que seus componentes incluíssem um grupo armado.

"Queríamos despertar a comunidade internacional, os países estrangeiros e a própria Ruanda", disse ele. "Para lembrar a eles que também existimos."

Abdi Latif Dahir , Declan Walsh , Matina Stevis-Gridneff e Ruth Maclean

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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