Discurso pró-armas e antiaborto mantém reduto conservador de Trump apesar da crise

De maioria branca e rural, Virgínia Ocidental reflete a influência da narrativa conservadora sobre base do presidente

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Martinsburg (Virgínia Ocidental)

O centro comercial de Martinsburg, na Virgínia Ocidental, é uma espécie de Disneylândia do discurso trumpista, onde não é preciso mais do que três minutos para achar um eleitor fervoroso do presidente americano.

Caminhando entre lojas e supermercados, homens e mulheres desfilam camisetas com frases a favor da posse de armas e bonés que pedem para "Fazer a América Grande de Novo", principal slogan da campanha à reeleição de Donald Trump.

Donald Trump cumprimenta apoiadores ao chegar em Wheeling, na Virgínia Ocidental, em julho de 2019
Donald Trump cumprimenta apoiadores ao chegar em Wheeling, na Virgínia Ocidental, em julho de 2019 - Shealah Craighead - 24.jul.19/Casa Branca

Na manhã de segunda-feira (14), Betty Grandel estacionou seu carro com um enorme adesivo em apoio ao presidente e repetiu um discurso que poderia ter sido feito de dentro da Casa Branca.

"Trump não deve ser julgado pela pandemia. Temos lutado contra o coronavírus, temos a melhor economia em anos, emprego e acordos comerciais que economizaram muito dinheiro aos EUA."

Betty diz que sua vida melhorou desde que Trump foi eleito, em 2016, mas sua cruzada por valores conservadores é o que a mantém fiel ao presidente.

Aos 70 anos, ela defende a manutenção do direito à posse de armas, que está na Constituição americana —é uma das principais bandeiras de Trump—, nega que haja racismo sistêmico nos EUA e se diz contrária ao aborto —garantido por decisão da Suprema Corte desde 1973.

Cada estado americano, porém, pode regulamentar a prática, e os mais conservadores, como a Virgínia Ocidental, têm aprovado leis que restringem o procedimento, em um movimento impulsionado pelo presidente.

"Abortar é assassinar. Eu não pensava assim quando era mais jovem, mas agora vejo que estão matando crianças [quando fazem o procedimento]", afirma para, em seguida, acrescentar sua percepção sobre os protestos antirracismo que tomaram o país.

"Foi uma pena que o homem negro morreu", diz Betty, em referência ao ex-segurança George Floyd, que foi asfixiado por um policial branco em Minnesota. "Mas essa questão de brancos e negros é voltar a 1960, quando havia segregação racial e era terrível. Hoje as pessoas não ligam para a sua cor. Estão usando isso politicamente para separar as raças. Isso não é racismo, é má política."

De maioria branca e rural —92% dos 1,8 milhão de habitantes da Virgínia Ocidental são brancos e 64% vivem em áreas rurais—, o estado reflete a influência que a narrativa conservadora ainda exerce sobre parte importante da base de Trump, mesmo diante da pandemia que já matou mais de 195 mil pessoas e deixou milhões de desempregados no país.

Em 2016, o republicano venceu em todos os 55 condados da Virgínia Ocidental e derrotou Hillary Clinton no estado por 67,9% a 26,2%. Em novembro, Trump espera repetir a performance, ampliando o número de pessoas que foram às urnas há quatro anos.

No segundo maior condado da região, onde fica a cidade de Martinsburg, mesmo eleitores que se dizem independentes ou que já votaram em democratas no passado seguem o roteiro a favor das armas e minimizam a responsabilidade de Trump diante da crise.

"Ninguém nunca satisfaz a todos. Trump seria xingado por qualquer coisa que fizesse [em relação à pandemia]”, diz Tom Byers. A condução do presidente em relação à pandemia é desaprovada pela maioria dos americanos, de acordo com pesquisas de opinião.

Membro da NRA (Associação Nacional do Rifle), mais poderoso grupo de lobby pró-armas nos EUA, o aposentado de 65 anos se classifica como um eleitor independente que escolhe "pessoas e não partidos" no dia da votação. Mas alguém que defende ferozmente o direito a armas, explica, vai ter sempre sua confiança.

Neste fim de semana, Trump abriu um novo capítulo de sua narrativa em um dos campos mais sensíveis para sua base eleitoral: a nomeação de juízes conservadores.
Com a morte de Ruth Bader Ginsburg, ícone progressista da Suprema Corte americana, na sexta-feira (18), o presidente tomou a frente da batalha política sobre a substituição da magistrada e disse que tem a obrigação de preencher a vaga de RBG, como a juíza era conhecida, "sem demora" —o Senado dos EUA, de maioria republicana, precisa aprovar o nome indicado pela Casa Branca num processo que especialistas estimam que pode durar até 70 dias.

Mesmo que o nome indicado por Trump não seja aprovado antes das eleições, em 3 de novembro, o presidente joga com a ideia de que conseguirá, pela terceira vez em quatro anos, indicar um juiz à Suprema Corte que, com maioria conservadora, poderia reverter precedentes históricos, inclusive sobre temas como aborto e posse de armas, e reformular a bússola político ideológica do país.

No subúrbio de Martinsburg, o democrata Jim Mullen preparava cachorro-quente em sua churrasqueira enquanto tentava fazer o diagnóstico da influência dessas ideias sobre o voto de eleitores em seu estado.

"A Virgínia Ocidental é socialmente conservadora. Trump aposta na raiva das pessoas, no discurso anti-aborto e a favor das armas, dos valores da família e no racismo para conquistá-las", explica.

Para Mullen, o fato de o coronavírus não ter atingido o estado de forma muito grave —foram 12,8 mil casos e 275 mortes até agora— é um elemento importante para o negacionismo trumpista na região.

A Virgínia Ocidental não elege um democrata à Casa Branca desde 1996, mas Mullen reclama da ausência de Joe Biden no estado.

"Biden sabe que não tem chances aqui, mas políticos só pensam no hoje, não no amanhã. As coisas poderiam mudar devagar."

No passado, a Virgínia Ocidental tinha prestígio entre democratas, principalmente por sua tradição sindicalista —o sul do estado era forte produtor de carvão, atividade que entrou em decadência nos últimos anos, e o cenário mudou.

Pesquisa da WPA Intelligence mostra que Trump lidera na Virgínia Ocidental com cerca de 66% ante 31% de Biden. Nacionalmente, o democrata está na frente —50,5% a 43,5%, de acordo com o site Five Thirty Eight.

O entregador Dave, 38, que não quis dar o sobrenome, celebra os números e resume por que a Virgínia Ocidental, estado onde vive desde que nasceu, deve reeleger o presidente com ampla vantagem.

Para ele, os americanos vão perceber que as três principais crises que assolam os EUA hoje —pandemia, recessão econômica e questão racial— não são tão graves quanto parecem e que o racismo só voltou à pauta por causa da eleição de Barack Obama, o primeiro presidente negro da história americana.

Dave afirma que, ao demonstrar empatia com o assassinato de Trayvon Martin, um jovem negro morto por um segurança em 2012, Obama "usou a carta racial e começou tudo isso". Na ocasião, Obama disse que Martin poderia ser ele e, meses depois, ativistas fundaram o movimento Black Lives Matter, que hoje lidera a maior parte dos atos contra o racismo e a violência policial no país.

"Quando se é presidente dos EUA, não tem raça, não tem nacionalidade, não tem gênero. Trump só vê uma cor, que é verde. Todo mundo sabe disso", afirma Dave, em referência às cédulas da moeda americana. "Ele não é político, é um homem de negócios que não precisa encher o bolso."

A Virgínia Ocidental tem apenas 5 dos 270 votos necessários no Colégio Eleitoral para vencer em novembro, mas reflete o discurso que mobiliza redutos conservadores em todo o país. Em uma eleição disputada, a ampliação da base mais fiel de Trump será fundamental para que o republicano permaneça na Casa Branca.

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