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Economia de mercado não é inimiga de proteção social, dizem ex-presidentes latino-americanos

Carta assinada por FHC, Mujica, Macri e outros líderes aborda risco à democracia durante pandemia

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São Paulo

Uma carta escrita por um grupo de ex-presidentes latino-americanos e divulgada nesta terça-feira (15) alerta para os riscos do enfraquecimento da democracia na região durante a pandemia de coronavírus e faz um apelo para que esta não se torne uma "década perdida" em termos econômicos e sociais.

Entre os signatários do documento estão o brasileiro Fernando Henrique Cardoso, o argentino Mauricio Macri, os uruguaios José Mujica, Tabaré Vásquez e Julio Maria Sanguinetti, o boliviano Carlos Mesa, o chileno Ricardo Lagos, a costa-riquenha Laura Chinchilla e o mexicano Ernesto Zedillo.

Também assinam os ex-presidenciáveis brasileiros Ciro Gomes e Marina Silva, além de outros 160 políticos e intelectuais latino-americanos.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um dos signatários da carta
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é um dos signatários da carta - Jardiel Carvalho-26.jan.20/Folhapress

Em abril, FHC e outros ex-presidentes da região já haviam publicado um manifesto alertando para os perigos à democracia durante a crise sanitária.

No novo texto, intitulado “Cuidemos da democracia para que ela não seja vítima da pandemia”, eles assinalam os “riscos latentes” de uma “grave deterioração democrática” neste período.

Segundo os autores, a crise econômica que virá será maior do que todas já vividas desde o século passado e, para que esta não se torne uma "década perdida", é necessário enfrentá-la "com um Estado que, além de solvente, seja efetivo na redistribuição de renda e oportunidades" e que "não seja presa fácil do curto prazo e dos interesses corporativos".

“Existem economias de mercado, mas não existem sociedades de mercado. A proteção social não é inimiga da liberdade econômica", diz o texto.

A carta afirma que o crescimento das desigualdades sociais e da pobreza aumenta o risco de a região se tornar “solo fértil para ‘soluções’ populistas e/ou autoritárias”. Também destaca o aumento das atribuições do poder executivo e das leis emergenciais decretadas na pandemia e faz um chamado para que não se rompa o equilíbrio entre os poderes.

“Os poderes executivos devem fazer uso responsável destas medidas de exceção para evitar violações dos direitos humanos e restrições arbitrárias à liberdade. O mesmo se aplica ao uso excepcional das Forças Armadas durante este período, as quais devem contribuir com profissionalismo e sem se envolver em tarefas de manutenção da segurança pública.”

Outro tema abordado é o adiamento de eleições em alguns países, decisão que deve se dar “por razões estritamente sanitárias e estar embasadas em um amplo consenso político-social”, segundo o documento.

O grupo cita ainda as reivindicações das mulheres por igualdade, o problema das mudanças climáticas e a disseminação de fake news e discursos de ódio.

Acrescenta que o fluxo de dados usado para enfrentar a emergência sanitária não deve ser usado pelos governos como instrumento de controle e autoritarismo e termina com um chamado à cooperação entre países latino-americanos para avançar em direção a uma “democracia de nova geração”.

Leia a seguir a íntegra do texto.

*

Cuidemos da democracia para que ela não seja vítima da pandemia

Estamos vivendo um momento de inflexão no futuro do mundo e de nossa região que gera ameaças e oportunidades. Por isso alçamos nossa voz para fazer um chamado: diante da pandemia da Covid-19, vamos cuidar do presente e do futuro da democracia. Existem riscos latentes e, se não pensarmos e atuarmos rapidamente, eles podem produzir uma grave deterioração democrática. Hoje, mais do que nunca, a América Latina requer uma democracia resiliente e de qualidade, sustentada por uma política e uma liderança com visão de futuro, capaz de superar os déficits de representação e eficácia que vêm minando o apoio à democracia na região.

Na raiz das fraquezas das sociedades latino-americanas, estão as várias dimensões das desigualdades sociais e os altos níveis de pobreza. Apesar dos avanços registrados nos últimos 30 anos, estes continuam a ser assuntos pendentes. A pandemia os evidenciou e intensificou, aumentando o risco de a região sofrer outra década perdida em termos econômicos e sociais. A crise representa um sinal de alerta: ela demanda medidas para superar os níveis atuais de desigualdade, pobreza e informalidade, que não são apenas os principais obstáculos ao desenvolvimento, mas também solo fértil para as “soluções” populistas e/ou autoritárias. São fatores que alimentam também o crime organizado, uma ameaça real e crescente que deve ser combatida com os instrumentos legais do Estado democrático de direito.

Um denominador comum diante da crise gerada pelo novo coronavírus é o aumento da responsabilidade e também das atribuições do Poder Executivo. No exercício desses poderes, muitos países da região decretaram leis emergenciais para combater a pandemia. Os poderes executivos devem fazer uso responsável destas medidas de exceção para evitar violações dos direitos humanos e restrições arbitrárias à liberdade. O mesmo se aplica ao uso excepcional das Forças Armadas durante este período, as quais devem contribuir com profissionalismo e sem se envolver em tarefas de manutenção da segurança pública.

É fundamental não romper o equilíbrio entre os poderes. O Poder Legislativo —com representação efetiva das aspirações sociais— e o Poder Executivo —com capacidade de aplicar as leis com independência— devem continuar a exercer suas funções e garantir os equilíbrios dinâmicos institucionais de um Estado democrático. A emergência não deve ser vista como um cheque em branco para enfraquecer os controles e a prestação de contas, nem solapar a luta contra a corrupção. Muito pelo contrário.

Se a pandemia obriga a postergar determinadas eleições —como vem ocorrendo em vários países— estas decisões deverão ser feitas por razões estritamente sanitárias e estar embasadas em um amplo consenso político-social. Nesse contexto, as organizações tanto do Estado como da sociedade civil devem propiciar os mecanismos de controle social das transferências e dos subsídios estatais para evitar que eles gerem pressões clientelísticas durante os futuros processos eleitorais.

Tudo isto acontece em tempos em que diversos paradigmas estão perdendo sua vigência. A democracia já enfrentava uma situação social turbulenta e uma governabilidade complexa: a cidadania exigindo melhor qualidade de vida e de serviços públicos; as mulheres demandando, com razão, igualdade e respeito; o grave problema das mudanças climáticas clamando por políticas de mitigação e adaptação consistentes e uma transformação paradigmática na direção do baixo carbono nos processos produtivos e padrões de consumo; e a expansão da internet universalizando o debate político e social, mas também disseminando fake news e discursos de ódio.

O futuro político da região será marcado pela nova prática de comunicação. Nesse novo ambiente, será ainda mais essencial melhorar a qualidade da formação cidadã, tanto na recepção quanto na divulgação de mensagens. Será igualmente necessário evitar que o crescente fluxo de dados disponíveis para o Estado para enfrentar a emergência sanitária seja utilizado pelos governos como um instrumento de controle e autoritarismo.

O papel do que é público, porque comum a todos, será fortalecido. Para que esta aspiração possa se concretizar, é preciso fortalecer as capacidades fiscais do Estado. É necessário um Estado que, além de solvente, seja efetivo na redistribuição de renda e oportunidades. Um Estado capaz de atuar com sentido estratégico, que não seja presa fácil do curto prazo e dos interesses corporativos.

Existem economias de mercado, mas não existem sociedades de mercado. A proteção social não é inimiga da liberdade econômica. A legitimidade de uma economia de mercado requer uma oferta robusta de serviços públicos de qualidade, como foi dramaticamente demonstrado pela pandemia.

O papel da política pode sair fortalecido. Está na hora de repensar o valor da política e da democracia para o futuro e de revisar nossas concepções e práticas de governo para atualizá-las e dotá-las de novas ferramentas que permitam governar, de forma democrática e eficaz, as sociedades complexas do século 21. A democracia representativa pode e deve ser aprimorada, começando pelos partidos, mas não substituída.

Está na hora também de reconstruir espaços e mecanismos de coordenação e cooperação entre os países latino-americanos, ao menos para fortalecer a capacidade regional de resolver seus conflitos e não importar as crescentes tensões globais.

Os tempos que estão por vir, com uma crise econômica maior do que todas já vividas desde o século passado, nos apresentam uma tarefa árdua: aproveitá-la como uma oportunidade para redefinir o horizonte do possível.

Este é o chamado que fazemos, pensar, propor e criar ideias e estimular ações para uma agenda incontornável: não apenas evitar que a democracia seja vítima da pandemia, mas também avançar em direção a uma democracia de nova geração. Porque governar para a democracia é entender como esta deve evoluir à medida que a cidadania cresce com ela. Por isso, não há tempo a perder.

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