Descrição de chapéu The New York Times

Em meio à pandemia, Cuba enfrenta crise alimentar e dificuldade econômica

Colapso do turismo sufocou uma economia já prejudicada por má gestão e sanções dos EUA

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Ed Augustín Frances Robles
Havana | The New York Times

Foi um dia de sorte para o guia de turismo desempregado em Havana.

A fila para entrar no supermercado do governo, que pode demorar de oito a dez horas, estava curta —apenas duas horas. E, melhor ainda, o guia, Rainer Companioni Sánchez, conseguiu pasta de dente —um achado raro— e esbanjou US$ 3 (R$ 16) em carne enlatada.

"É a primeira vez em muito tempo que vemos pasta de dente", disse ele, comemorando a vitória com sua namorada. "A carne nessa lata é muito cara, mas cada um de nós comprou uma simplesmente porque às vezes, em caso de emergência, não há carne em lugar nenhum."

Policial organiza fila de clientes na entrada de um supermercado em Havana
Policial organiza fila de clientes na entrada de um supermercado em Havana - Alexandre Meneghini - 1º.set.20/Reuters

Cuba, um Estado policial com um sólido sistema de saúde pública, conseguiu controlar rapidamente o coronavírus, mesmo quando a pandemia colocou as nações mais ricas em crise. Mas sua economia, já sofrendo com a má administração e as sanções dos Estados Unidos, estava particularmente vulnerável à devastação econômica que se seguiu.

À medida que as nações fechavam aeroportos e fronteiras para combater a propagação do vírus, as viagens turísticas a Cuba despencavam, e a ilha perdia uma importante fonte de moeda forte, mergulhando em uma das piores carências alimentares em quase 25 anos.

Os alimentos disponíveis geralmente são encontrados apenas em lojas administradas pelo governo abastecidas com produtos importados e cobrados em dólares. A estratégia, também utilizada na década de 1990, durante a depressão econômica conhecida como "período especial", é utilizada pelo governo para arrecadar divisas dos cubanos que têm poupanças ou recebem dinheiro de amigos ou parentes no exterior.

Mesmo nessas lojas, os produtos são escassos, e os preços podem ser exorbitantes: naquele dia, Companioni não conseguiu encontrar frango ou óleo de cozinha, mas havia um presunto de 8 quilos por US$ 230 (R$ 1.245) e um pedaço de queijo de 3,5 kg por US$ 149 (R$ 806).

A economia de Cuba estava em dificuldades antes do coronavírus. O governo Trump trabalhou duro para fortalecer o embargo comercial de décadas, perseguindo as fontes de moeda forte de Cuba. Também impôs sanções às empresas petroleiras que entregavam petróleo da Venezuela a Cuba e reduziu os voos comerciais dos Estados Unidos para a ilha.

No mês passado, o secretário de Estado, Mike Pompeo, anunciou também o fim dos voos fretados. Depois que a estatal cubana de energia Corporación Panamericana enfrentou sanções, até o suprimento de gás de cozinha teve que ser reduzido.

Então a Covid-19 acabou com o turismo. As remessas enviadas por cubanos que vivem no exterior começaram a diminuir conforme a doença causava vasto corte de empregos nos Estados Unidos.

Isso deixou o governo cubano com muito menos fontes de receita para comprar os produtos que vende nas lojas estatais, levando à escassez de produtos básicos em toda a ilha. No início deste ano, o governo alertou que seria difícil conseguir produtos de higiene pessoal.

Cuba enfrenta "a tripla ameaça de Trump, Venezuela e depois Covid", diz Ted Henken, professor do Baruch College e coautor do livro "Entrepreneurial Cuba" [Cuba empreendedora]. "A Covid foi o que os levou ao abismo."

A pandemia e a recessão que se seguiu levaram o governo a anunciar que, depois de anos de promessas, aplicaria uma série de reformas econômicas destinadas a estimular o setor privado.

O Partido Comunista disse em 2016 que legalizaria empresas privadas de pequeno e médio porte, mas nenhum mecanismo foi criado para tanto; assim, os empresários ainda não conseguem obter financiamento, assinar contratos como pessoa jurídica ou importar bens. Agora, isso deve mudar, e mais linhas de trabalho devem ser legalizadas, embora detalhes não tenham sido anunciados.

Cuba também tem um histórico de implementar reformas, apenas para rescindi-las meses ou anos depois, disseram empresários.

"Eles voltam, avançam e voltam", disse Marta Deus, sócia de uma revista de negócios que possui uma empresa de entregas. "Eles precisam confiar no setor privado em toda a sua capacidade de prover o futuro da economia. Temos grandes ideias."

O governo atribui a culpa pela situação atual diretamente a Washington.

"Por que não podemos exportar o que queremos? Porque toda vez que exportamos para alguém eles tentam cortar essa exportação", disse o líder cubano, Miguel Díaz-Canel, sobre os Estados Unidos em um discurso neste verão.

"Toda vez que tentamos administrar um crédito, eles tentam tirar nosso crédito. Eles tentam impedir que o combustível chegue a Cuba. Então temos que comprar em terceiros mercados, a preços mais altos. Por que não se fala disso?"

Díaz-Canel ressaltou que, apesar das dificuldades, Cuba ainda teve uma batalha bem-sucedida contra o coronavírus: o sistema de saúde não entrou em colapso e, segundo ele, nenhuma criança ou profissional médico morreu da doença.

Com 11,2 milhões de habitantes, Cuba tinha pouco mais de 5.000 casos de coronavírus e 115 mortes até sexta-feira (18), uma das taxas de mortalidade mais baixas do mundo. Em comparação, Porto Rico, com 3,2 milhões de pessoas, teve cinco vezes mais mortes.

Pessoas com resultado positivo em Cuba foram hospitalizadas por duas semanas —mesmo que fossem assintomáticas— e seus contatos expostos, enviados para isolamento por duas semanas. Prédios de apartamentos e até quarteirões inteiros da cidade que tiveram aglomerações foram fechados para visitantes.

Qualquer um que tivesse viajado de avião depois de março também teve que se isolar em centros de quarentena, e estudantes de medicina iam de porta em porta examinando milhões de pessoas diariamente. As máscaras são obrigatórias, e as multas por ser pego sem elas, pesadas.

Com os voos internacionais praticamente paralisados, os oficiais de imigração agora são destacados para vigiar os prédios de apartamentos em quarentena, garantindo que ninguém entre ou saia 24 horas por dia.

Muitos cubanos esperam que as reformas econômicas estimulem o setor privado e permitam que as empresas independentes impulsionem a economia.

Camilo Condis, eletricista desempregado há meses, disse que as mudanças devem ocorrer rapidamente e permitir que Cuba funcione. "Como nós, proprietários de empresas privadas, dizemos aqui: 'Tudo o que quero é que eles me deixem trabalhar'", disse.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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