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EUA correm risco de crise eleitoral e ameaça à democracia, diz especialista

Larry Diamond, professor de Stanford, vê grandes chances de contestação de votos e litígio

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São Paulo

Há um risco significativo de os Estados Unidos passarem por uma crise de legitimidade após as eleições presidenciais de novembro, o que seria uma ameaça inédita à democracia do país.

Essa é a visão de Larry Diamond, professor de Ciência Política da Universidade Stanford e um dos maiores especialistas do mundo no estudo da democracia.

“Temos uma tempestade perfeita: uma pandemia que cria problemas generalizados para a votação; tecnologia de votação antiquada que levará muitas das cédulas pelo correio a serem contadas à mão; tentativas de sabotar o Serviço Postal dos EUA; um presidente que não respeita a democracia e acredita que o único resultado democrático é a reeleição dele, e campanhas de desinformação para minar a confiança no processo eleitoral”, diz Diamond, que é fundador do Journal of Democracy e pesquisador do Hoover Institute.

O cientista político Larry Diamond em palestra em São Paulo
O cientista político Larry Diamond em palestra em São Paulo - Christian Parente - 16.mai.2017/Tutu

O acadêmico acredita que os votos podem ser contestados em quatro estados americanos e que o litígio chegará aos tribunais. “Acho que estamos diante da possibilidade de uma crise muito maior do que a ocorrida após a eleição de 2000."

O pleito, disputado entre Al Gore e George W. Bush, teve recontagem de votos na Flórida e o conflito chegou até a Suprema Corte.

Diamond participou de um webinar sobre democracia promovido pela RAPS e pela Fundação FHC na semana passada.

*

O presidente Donald Trump está constantemente levantando dúvidas sobre a lisura das eleições e o voto pelo correio. Ele tentou cortar as verbas do Serviço Postal americano e se recusa a dizer que aceitará o resultado do pleito. Existe o risco de uma crise de legitimidade nos EUA após a eleição de 3 de novembro? É possível que fiquemos sem saber o resultado durante semanas? Acho que há um risco significativo de termos uma crise de legitimidade em torno das eleições presidenciais. O presidente Trump já deixou claro que vai questionar a legitimidade das eleições se ele não vencer, que foi o que ele ameaçou fazer na última eleição também.

Está muito claro que eles estão sabotando o Serviço Postal dos EUA na tentativa de minar a votação pelo correio porque eles acham, e provavelmente não estão inteiramente corretos a respeito disso, que mais eleitores democratas do que republicanos pretendem enviar suas cédulas pelo correio. É parte de uma estratégia mais ampla de supressão de votos de pessoas que tendem a votar em democratas, particularmente minorias raciais e étnicas, e pessoas de mais baixa renda em centros urbanos.

E já teríamos uma série de desafios para a votação, mesmo sem as tentativas de sabotagem, por causa da pandemia de Covid-19 e as dificuldades operacionais de ter pessoas para trabalharem nas seções eleitorais. Muitos dos trabalhadores estão na faixa dos 60 a 70 anos, não querem se expor ao vírus, e, além disso tudo, temos esse tipo de atividade e disseminação de desinformação. É muito perigoso.

Se o presidente Trump contestar os resultados, ou se demorar semanas para sabermos o resultado, o senhor acha que as instituições americanas são fortes o suficiente para resistir a essa instabilidade? Eu espero que sejam, mas elas nunca passaram por um teste como esse. Nunca tivemos um presidente dos Estados Unidos com uma mentalidade autoritária. Tivemos presidentes que tinham instintos imperiais ou autocráticos, mas um presidente que admira ditadores e preferiria ser um ditador, isso é totalmente novo na história americana.

É alarmante o fato de grande parte dos republicanos terem se submetido aos desígnios de Trump, terem embarcado nessa celebração da personalidade de Trump, sem nenhuma crítica, nuance ou preocupação com a falta de fidelidade dele às normas democráticas.

A maioria das pessoas dentro e fora dos EUA não se dá conta de que nós temos uma legislação muito ambígua. A combinação do Ato de Contagem Eleitoral de 1887 e das 12ª e 20ª Emendas da Constituição, que versam sobre a eleição do presidente pelo colégio eleitoral, cria muita incerteza sobre como resolver um litígio eleitoral.

Temos uma tempestade perfeita: uma pandemia que cria problemas generalizados para a votação; tecnologia de votação antiquada, que levará muitas das cédulas pelo correio a serem contadas à mão; tentativas de sabotar o Serviço Postal dos EUA; um presidente que não respeita a democracia e acredita que o único resultado democrático é a reeleição dele; campanhas de desinformação para minar a confiança no processo eleitoral.

Se for uma votação apertada, nós provavelmente teremos uma crise pós-eleição que chegará aos tribunais. Se a diferença de votos não for pequena, nós podemos escapar de uma crise. Não pode demorar meses para sair o resultado, porque alguém precisa tomar posse em janeiro, e 8 de dezembro é o prazo para os estados certificarem seus votos para o colégio eleitoral, que "vota" em 14 de dezembro.

O senador Marco Rubio apresentou um projeto de lei no Senado, o qual eu apoio fortemente, pedindo um adiamento do prazo para certificar os votos do colégio eleitoral para 1 de janeiro, e a votação em si do colégio eleitoral para 2 de janeiro.

Isso daria três semanas e meia a mais para contar e verificar os votos pelo correio e resolver controvérsias que podem surgir.

Não havia uma pandemia na época, mas podemos comparar de alguma forma a situação atual com a recontagem de votos na eleição de 2000, quando George W. Bush concorria com Al Gore? Acho que estamos diante da possibilidade de uma crise muito maior do que a ocorrida após a eleição de 2000. Pode haver contestação dos votos em vários estados.

Em quatro estados-pêndulo onde as pesquisas mostram pouca diferença na intenção de votos —Wisconsin, Pensilvânia, Michigan e Carolina do Norte—, as legislaturas estaduais são controladas por republicanos e os governadores são democratas. Isso gera a possibilidade de, caso haja uma diferença muito pequena de votos entre os dois candidatos, uma legislatura republicana certificar um resultado declarando Trump o vencedor, e o governador democrata declarar Joe Biden o vencedor.

De alguma maneira, os tribunais e o Congresso teriam que decidir quem realmente ganhou os votos do colégio eleitoral nesses estados. É mais uma amostra de como o colégio eleitoral é um anacronismo perigoso e paralisante, mas é o que temos hoje.

Quando escreveu o artigo sobre “recessão democrática” no Journal of Democracy, em 2015, o senhor esperava que os EUA estariam enfrentando ameaças a seu processo democrático neste momento? Não. Eu enxergava que havíamos entrado em uma época de polarização crescente e tentativas cada vez maiores de suprimir votos e desafiar normas democráticas básicas de civilidade e fidelidade à lei e à Constituição.

Já naquela época, tínhamos o chamado “movimento birther” —as alegações, sem nenhuma evidência, de que Barack Obama não tinha nascido nos EUA. E tivemos supressão de votos em alguns estados. Mas não tínhamos um presidente ou candidato de um grande partido que apoiasse esses disparates e violasse normas democráticas.

Eu não achei que Trump venceria as primárias republicanas e achei que não era possível ele se eleger presidente dos EUA. Obviamente, eu julguei mal as coisas. Eu e muitos analistas políticos dos EUA fomos demasiadamente otimistas em relação à força e à durabilidade da democracia nos Estados Unidos.

Em seu último livro, o senhor destaca China e Rússia como grandes ameaças, e também regimes populistas autoritários como Hungria, Polônia e Filipinas. Onde o senhor posicionaria o Brasil nesse cenário? Definitivamente, Bolsonaro tem todas as características de um populista iliberal. Ele se posiciona como um outsider, antielite, tenta polarizar o povo real do Brasil contra as elites e minorias “não merecedoras”, e questiona instituições democráticas.

E tem uma dimensão que é única entre esses governos iliberais, admiração pela ditadura militar, tendência de elevar e incorporar militares no governo. Ele divide as pessoas, de forma muito polarizadora, e se aproveita dos impulsos de nacionalismo, medo, insegurança. Mas só porque um líder é um populista iliberal não significa que ele vai se tornar um governante autoritário.

No caso do Brasil, o poder é tão disperso, o sistema partidário tão fragmentário, e Bolsonaro é suficientemente incompetente como político que ele provavelmente não vai conseguir realizar suas ambições autoritárias. Embora eu conheça gente que acha que sim, ele tem boas chances de se reeleger.

Há muitas similaridades entre Brasil e EUA neste momento. Os dois países têm um populista iliberal com inclinações e ambições autoritárias, que não são competentes como governantes.

E eles talvez não consigam realizar suas ambições autoritárias em parte por causa de pressões do sistema constitucional e da sociedade, que ainda se mantém robusta —em parte porque eles não são habilidosos como outras pessoas que conseguiram, como Recep Erdogan na Turquia, por exemplo.

A reeleição de Trump iria viabilizar seus impulsos autoritários? Vimos que líderes populistas, em segundo mandato, conseguem cooptar mais facilmente outros poderes e, assim, aprofundar tendências autoritárias, como ocorreu na Índia. Não tenho dúvidas de que um segundo mandato iria estimular e liberar os impulsos autoritários de Trump. Seria muito assustador. Se ele conseguiu desafiar as regras de ética, politizar o Departamento de Justiça, demitir inspetores gerais e corroer princípios de responsabilidade com tal descaramento em seu primeiro mandato, imagine o que fará se for reeleito, e sentir que o rumo que vem trilhando, de desacato às normas democráticas, foi validado e aprovado pelo povo americano?

Ainda que ele não ganhe a maioria do voto popular, como em 2016, seria muito mais perigoso do que o primeiro mandato. O mesmo vale para o Brasil.

O senhor acredita que a China deve ser encarada como uma grande ameaça? A abordagem atual do governo Trump, de bloquear a Huawei e promover uma guerra comercial, está correta? A abordagem de Trump está correta em parte. Há muito apoio dos dois partidos para a linha dura de Trump em relação à Huawei. E sobre outras tentativas da China de projetar “sharp power” [políticas de governos autoritários usadas para projetar poder em países democráticos], desafiar e minar processos e instituições democráticas.

Não existe nenhuma parede divisória entre empresas de tecnologia chinesas, de software ou infraestrutura, ou qualquer outra empresa chinesa, e o partido Comunista da China. A lei chinesa, aliás, exige que as empresas chinesas passem seus dados se o governo comunista pedir. Elas nem têm escolha.

Não há nenhuma dúvida de que, quando a Huawei constrói uma infraestrutura de telecomunicação para o 5G, ela embute nessa infraestrutura a capacidade de sugar todos os dados. Esses dados ficam à disposição do governo chinês, que pode usá-los para vigilância, manipulação e controle.

É um risco grande demais para a segurança nacional e liberdade pessoal, não se pode permitir. Eu me oponho terminantemente a qualquer democracia dar qualquer participação ou comprar infraestrutura de comunicações de empresas chinesas. É a mesma coisa que pegar todos os dados, embrulhar e dar de presente para Xi Jinping. Mas outras ações de Trump são mais questionáveis, principalmente dificultar vistos para pessoas só porque elas vêm da China. Precisamos ter uma abordagem mais cuidadosa.

Como deveria ser a abordagem ao desafio chinês? Em nosso relatório para o Hoover Institute sobre as operações chinesas de influência nos EUA, falamos em promover uma vigilância construtiva, que implica estar muito consciente e alerta para as diferentes maneiras que a China usa para tentar exercer influência, fazer bullying ou intimidar entidades americanas ou nos EUA —controlar mídia de língua chinesa nos EUA, censurar tópicos que podem ser discutidos e indivíduos que podem falar em universidades americanas.

É preciso reagir contra esse tipo de atitude, recusar esse tipo de intimidação e não deixar que nossas tecnologias sejam roubadas por chineses.

Mas ainda acho que é importante se relacionar de alguma maneira com a China, ter chineses estudando em universidades americanas, ter cooperação científica e técnica, mas tudo precisa ser cuidadosamente checado e monitorado.

Devemos dizer à China que não queremos uma nova guerra fria, e muito menos uma guerra quente. Eles não gostam do nosso sistema, nós não gostamos do sistema deles, mas nós temos que conviver e ajudar a administrar os problemas globais —mudança climática, refugiados, saúde pública. Mas não vamos tolerar bullying, nem deixar que eles assumam o controle do Mar do Sul da China, que é multilateral, e vamos usar forças militares na região da Ásia-Pacífico para deixar claro que apoiamos nossos aliados.

O senhor tem advertido para os efeitos das redes sociais sobre o debate público e a democracia. O senhor acha que é necessário ter mais regulamentações sobre as plataformas de internet, e o que o senhor acha da atual discussão sobre medidas antitruste contra essas empresas? Acredito que é necessário ter mais regulação, mas a pergunta é se precisamos de regulação bem específica ou mais ampla. Eu preferiria que elas se autorregulassem, Facebook deu um passo importante ao criar o órgão de apelação para cuidar de reclamações e decisões de moderação de conteúdo. Vamos ver se esse órgão terá independência.

As empresas precisam agir mais para remover desinformação, especialmente vinda de grandes figuras políticas. E as pessoas deveriam ter mais controle sobre seus dados. Gostaria de uma abordagem gradual, que dê tempo e espaço para as plataformas assumirem mais responsabilidade.

Em relação a antitruste, é obvio que essas empresas são poderosas demais e grandes demais, mas como podemos separá-las sem prejudicar sua habilidade de competir com seus pares chineses?

Em perspectiva histórica, qual é o estado da democracia no mundo hoje? Está em declínio, em recessão, mas não em colapso. É interessante que, depois de 14 anos de recuo contínuo nos níveis de liberdade no mundo, agora, seis meses depois do início da pandemia global, ainda não temos uma onda de rupturas democráticas. Temos, de forma incremental, um declínio contínuo na qualidade da democracia e nos níveis de liberdades individuais. Temos várias dimensões de autoritarismo dissimulado.

Larry Diamond é professor de Ciência Política da Universidade Stanford, fundador do Journal of Democracy e pesquisador do Hoover Institute. Já atuou como consultor na Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), no Banco Mundial, na ONU, no Departamento de Estado e na Autoridade Provisória da Coalizão (APC), em Bagdá (Iraque).

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