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Mike Pompeo na Ilha das Guianas

Há outros fatores que explicam essa visita sem precedentes anunciada de última hora

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Pedro Silva Barros

É economista. Trabalha no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea (Brasília). Foi Diretor de Assuntos Econômicos da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Doutor em Integração Latino-Americana pela USP.

Nesta sexta(18), pela primeira vez na história, um secretário de Estado dos Estados Unidos pisará na maior ilha marítima fluvial do mundo. De uma só vez, Mike Pompeo estará em Georgetown, Paramaribo e Boa Vista, três das principias cidades da Ilha das Guianas. A maior parte da cobertura jornalística e análises sobre esse fato tem se concentrado na tentativa de Donald Trump apresentar uma agenda mais dura e efetiva sobre a Venezuela pela busca de votos para os republicanos na Flórida. Mas há outros fatores que explicam essa visita sem precedentes anunciada de última hora.

O contexto de fragmentação política e desintegração comercial da América do Sul torna nosso subcontinente um palco aberto para disputas de potências extrarregionais. A divisão entre Brasil e Colômbia, de um lado, e Argentina, México e Chile, de outro, tornou possível, também pela primeira vez na história, que no último sábado (12) um estadunidense fosse eleito para presidir o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Filho de mãe cubana, Mauricio Claver-Carone era assessor especial de Donald Trump e diretor executivo para assuntos do hemisfério ocidental no Conselho de Segurança Nacional. Ele teve como principal argumento de campanha a instrumentalização do banco como contraponto à expansão chinesa na América Latina. Na terça (15), foi anunciada a visita de Pompeo ao Norte da América do Sul.

A Ilha das Guianas é única, mas sua integração de infraestrutura é muito deficiente e nunca foi planejada em conjunto. Seus 1,7 milhão de km² equivalem ao território europeu de Alemanha, França, Espanha e Itália juntos. Localizada no norte da América do Sul, é, ao mesmo tempo, atlântica, caribenha e amazônica, tendo como principais demarcações os dois principais rios do norte da América do Sul, o Amazonas e o Orinoco, e a interconexão natural entre eles pelo canal Cassiquiare e o rio Negro; sua parte setentrional é dividida ao meio pelo rio Essequibo. Além de Suriname e Guiana, esse território é compartilhado por Brasil –pelos estados de Amapá, Roraima e a calha norte do Amazonas de todo o estado do Pará e do Amazonas até o rio Negro–, Venezuela –estados de Delta Amacuro, Bolívar e Amazonas – e a França – território ultramarino da Guiana.

O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, de terno e em frente a uma bandeira dos EUA
O secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo - Erin Scott/AFP

No início deste ano houve eleições gerais tanto na Guiana como no Suriname. Em ambos os países o pleito foi parelho e os derrotados demoraram a reconhecer os resultados. A vitória de Irfaan Ali na Guiana só foi formalizada após quatro meses. Em contraste, nas eleições de 2015, a hoje abandonada e moribunda União de Nações Sul-Americanas (Unasul) havia enviado missões eleitorais com participação do Brasil e os resultados foram aceitos imediatamente por todos os atores políticos dos dois países.

Do ponto de vista econômico, Guiana e Suriname têm poucas relações com a América do Sul. Apenas 2% do comércio exterior de ambos é com os demais dez países da região. Nos últimos dois anos há um boom petroleiro na Guiana que faz com que o país seja o único das Américas que terá crescimento econômico positivo em 2020. A expectativa é de que a produção marítima de petróleo também se expanda no Suriname. É possível que em poucos anos a produção oficial de petróleo da Guiana supere a da Venezuela. Embora tenha as maiores reservas de petróleo do mundo, a Venezuela viu sua produção petroleira despencar devido à própria ineficiência e ao embargo que sofre nos últimos anos por parte dos EUA.

A estratégia de derrubar o governo da Venezuela com isolamento político e asfixia econômica desenhada por EUA e Grupo de Lima em 2017 teve como resultados concretos o colapso da produção petroleira registrada, o aprofundamento da crise social venezuelana e o fortalecimento político e econômico interno dos militares fiéis a Nicolás Maduro. Vendo-se distante de seus aliados tradicionais, a Venezuela tornou-se o maior devedor chinês na América Latina. A cada passo que os EUA e a Otan avançam no entorno russo, Moscou fortalece os laços econômicos, políticos e militares com Caracas. Em 2002, quando a direção da petroleira estatal PDVSA tentava derrubar o governo, Hugo Chávez recorreu ao Brasil para que fossem enviados navios para garantir o fornecimento interno de gasolina. Agora é o Irã que cumpre esse papel. Na eleição parlamentar de dezembro de 2015, vencida pela oposição a Maduro, a principal missão externa de observação eleitoral foi da Unasul. Nas eleições parlamentares de dezembro de 2020, com baixa participação da oposição, a Turquia deve ocupar esse espaço.

Não é a primeira vez que Guiana e Suriname se veem em meio a grandes disputas geopolíticas. A Guiana se tornou independente do Reino Unido em 1966 e herdou antigas disputas territoriais entre britânicos e venezuelanos. O Suriname se tornou independente dos Países Baixos apenas em 1975 e foi rapidamente reconhecido pelo Brasil. Guiana e Suriname nasceram ameaçados pelas teses de internacionalização da Amazônia, que ganhavam força na Europa e em diversas organizações internacionais, e pela sombra da Guerra Fria.

Em 1978, liderados pelos presidentes Ernesto Geisel do Brasil e Carlos Andrés Pérez da Venezuela, foi assinado o Tratado de Cooperação Amazônica com o objetivo de promover o desenvolvimento integral da região e de suas populações e reafirmar a soberania exclusiva dos oito países da região sobre a governança da maior reserva de biodiversidade do mundo. Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela vetaram a possibilidade de que potências extrarregionais participassem do tratado naquele momento e futuramente.

Em 1983, o governo surinamense era acusado pelos Estados Unidos e países europeus de graves violações de direitos humanos. Tanto a antiga metrópole como a potência hemisférica tentaram isolar política e economicamente o país com o objetivo de derrubar seu governo. Ato contínuo, Cuba e outros países de orientação socialista aumentaram a atuação no Suriname. A União Soviética aumentava sua presença no Caribe. Os Estados Unidos governados pelo republicano Ronald Reagan buscaram apoio do Brasil de João Figueiredo para uma intervenção em Paramaribo. O Brasil se recusou e, alternativamente, enviou uma missão diplomática liderada pelo general Danilo Venturini ao Suriname. Deu-se início a uma ampla cooperação brasileira para a organização do Estado surinamense, que se afastou dos países socialistas, evitou a invasão americana e garantiu relativa estabilidade ao país nas últimas décadas. Meses depois, por situação análoga, os Estados Unidos invadiram a ilha caribenha de Granada e mataram seu presidente Maurice Bishop.

A ação do Brasil no norte da América do Sul foi eficiente para dissuadir a presença extrarregional, seja quando atuou via de concertação regional, com o tratado de cooperação amazônica, ou bilateralmente, com a missão Venturini. Os governos de Geisel e Figueiredo sabiam que o maior prejudicado por um conflito movido por interesses extrarregionais na América do Sul seria o próprio Brasil.

A presença de Mike Pompeo na Guiana, Suriname, Roraima e Colômbia numa mesma viagem só pode ser entendida neste quadro de fragmentação da governança regional sul-americana e menor protagonismo brasileiro.

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