Mundo vive onda de desdemocratização, afirma estudo

Matriz mapeia mais de 200 itens em 179 países desde 1900; países que se fecharam superam os que se abriram em 2019

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Bruxelas

A maior democracia do mundo não é mais aquela. Em 2019, a Índia deixou esse status e passou a ser classificada como regime híbrido pela DeMaX —estudo que avalia mais de 200 itens de liberdade política, igualdade e controle legal em 179 países desde 1900.

Mais que um caso isolado, a trajetória do regime indiano é o exemplo eloquente de um movimento amplo de desdemocratização registrado pelo estudo recém-divulgado.

No país de 1,366 bilhão de habitantes, perda de liberdade religiosa, repressão a protestos, violação de direitos humanos e rota de colisão com o Judiciário explicam a entrada no grupo dos países que perderam o rótulo de democracias em 2019.

Por esse caminho foram 13, mais que o quádruplo dos 3 que se abriram a ponto de deixar o time das autocracias (Maldivas, República Centro-Africana e República Dominicana).

Manifestantes usam luz de celulares durante ato em defesa da liberdade de imprensa na Hungria, em julho; país está entre os que têm passado por desdemocratização - Bernadett Szabo-24.jul.20/Reuters

Nem todos os movimentos foram fortes o suficiente para alterar o tipo de regime, mas, em variados graus, 107 países perderam qualidades democráticas, superando com folga os 69 que avançaram.

A democratização estagnou, mas o retrocesso não leva a um ressurgimento de ditaduras, diz o diretor da DeMaX, Hans-Joachim Lauth, professor da Universidade de Würzburg (Alemanha).

Em vez de onda de autoritarismo, o que o mapeamento identifica desde 2012 é uma convergência em direção ao centro do espectro político e o aumento expressivo de regimes híbridos (que exibem características autocráticas e democráticas, geralmente em uma mistura de eleições livres, estilo governamental autocrático e Estado de Direito fraco).

Para esse grupo caminharam tanto as 3 ex-autocracias quanto as 12 ex-democracias —que, entre outros, incluem Bolívia, Níger e Montenegro.

Em 2019, 41 Estados foram classificados como híbridos pela DeMaX, ou 23%. É a segunda maior fatia, depois das 46 democracias incompletas (26% do total), das quais 22 revelaram quedas significativas de qualidade.

Aí se encaixa o Brasil, que não mudou de cor na escala, mas é citado como um dos principais exemplos da onda de desdemocratização, ao lado de Hungria, Turquia e Sérvia.

A pontuação brasileira recuou 32% na última década, passando de 79,6 (numa escala de 0 a 100) em 2010 para 60,2 em 2019.

“No Brasil, a eficácia do governo foi drasticamente reduzida, principalmente devido ao aumento da corrupção e à difícil cooperação entre o presidente e o Legislativo”, afirma Lauth.

No subquesito de estabelecimento e implementação de regras, o Brasil tem 43 pontos, abaixo dos 50 mínimos para mostrar um funcionamento democrático e muito aquém do das democracias plenas (que precisam ter no mínimo 75 pontos em todos os 8 subíndices).

Entram no campo mais mal avaliado do Brasil aspectos como controle do governo por Legislativo e órgãos como Tribunal de Contas e Procuradoria Geral, independência do governo, respeito pelo governante aos direitos de personalidade, administração pública imparcial e não discriminatória e igualdade de tratamento pelo Legislativo.

O coordenador do estudo aponta ao menos três causas do movimento global de convergência dos regimes para o centro do espectro político.

No lado da desdemocratização, houve “crescente complexidade e incontrolabilidade do mundo, que impulsionou o populismo e aprofundou as divisões sociais”.

“A má governança nas democracias, especialmente nas deficientes, como o Brasil, também contribuiu para a perda de confiança da população nos atores políticos, o que foi explorado por tendências autoritárias”, afirma Lauth.

No outro lado do espectro, alguns elementos democráticos são mantidos, para evitar a condenação internacional, argumenta o professor: “Uma recaída abrangente na direção de autocracias viola os padrões que estão estabelecidos no mundo atual”.

A desdemocratização vai além da gangorra de números de países em cada classe e atinge as próprias instituições. Em 2019, melhorias na qualidade da democracia superaram pioras em apenas 4 dos 15 campos analisados, o que mostra um saldo negativo para o estado da democracia.

De todos os critérios, o que mais recuou foi a comunicação: países que aumentaram restrições à liberdade de expressão e mídia representam o dobro dos que mostraram a tendência oposta.

Houve um refluxo em relação à última onda de democratização, no início dos anos 1970, segundo Lauth: “Durante décadas, o desenvolvimento dinâmico de uma imprensa livre foi o elemento democrático mais distinto, além das eleições”.

Naquela época, mesmo em regimes autoritários e híbridos houve liberalização, ainda que em menor grau.
“Infelizmente, isso regrediu na última década. As tentativas de muitos governos de impedir e regular a imprensa contribuíram significativamente para a diminuição da qualidade da democracia”, diz o professor.

A deterioração da liberdade de expressão na análise feita pela DeMaX é ainda mais preocupante porque seu conceito é mais rígido que os adotados por outros indicadores como o ranking Freedom in the World (FIW), da Freedom House, e o Índice de Democracia da Economist Intelligence Unit.

O ranking da universidade alemã considera que houve deterioração da liberdade de opinião se houver mudanças legais ou outras barreiras institucionais.

Não inclui, portanto, ataques verbais a jornalistas ou disseminação de fake news, que se intensificaram em países como os EUA ou o Brasil.

Isso explica por que a DeMaX registra pouca mudança recente nos EUA, que, com seus 329 milhões de habitantes, assumiu o posto de maior democracia do mundo após o tropeço indiano.

Após a posse de Donald Trump, em 2017, o país deixou a categoria superior de democracias no ranking da Freedom House e é visto como democracia falha pela Economist. Ambos os institutos incluem aspectos de cultura política, participação popular e níveis socioeconômicos em suas análises, diferentemente da DeMaX.

“Mesmo que a brutalização da linguagem, a divulgação de notícias falsas, a negação de conhecimento científico ou declarações erráticas de chefes de Estado sejam problemáticas, o direito à liberdade de expressão e de imprensa ainda existe em grande parte e não foi restringido por mudanças legais”, afirma o estudo.

Os EUA são vistos como um país que, ao longo de décadas, é marcado por uma democracia não igualitária, em que “valores mais baixos de igualdade estão ao lado de valores mais elevados de liberdade e controle”.

Ainda que a qualidade democrática americana não tenha mudado nos últimos anos para retirá-lo dos 37 da elite, houve um recuo de 10% em sua pontuação, para 82,5, em relação aos 91 de seu ponto mais alto, em 2009.

Com isso, os EUA registraram no ano passado a terceira menor qualidade entre as democracias operantes.

Podem ser o caso mais controvertido do estudo, mas é nos seus calcanhares que está a estrela da DeMaX 2019.

A Jamaica, com 81,7, foi o único país a entrar para o grupo das democracias operantes, deixando Israel, com 81, na lanterna.

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