Pressão americana contra 5G chinês encontra dificuldades no continente africano

Dois países já operam com tecnologia da Huawei, principal alvo dos EUA

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Brasília

A pressão americana contra o 5G chinês vem surtindo efeito, mas os EUA devem encontrar mais resistência no continente africano do que em países como Reino Unido, Japão, Austrália e Brasil.

Na África, a disseminação do 5G ainda é uma realidade distante. O acesso ao 3G no continente suplantou o uso do 2G somente em 2019. Em comparação, no Brasil mais de 70% dos acessos por celular são feitos no 4G —cada geração representa um salto tecnológico em relação à anterior.

Apesar disso, ao menos quatro países africanos já realizaram testes com a nova geração e dois já começaram a operar a tecnologia.

Sorrindo, o primeiro-ministro de Uganda aperta a mão de um robô
O primeiro-ministro de Uganda, Ruhakana Rugunda, aperta a mão de um robô que usa a rede 5G durante uma cerimônia de teste da tecnologia em Kampala, capital do país - Zhang Gaiping - 17.jan.2020/Xinhua

Na África do Sul e no Lesoto, as operadoras Rain e Vodacom oferecem o 5G comercialmente em algumas cidades com tecnologia da chinesa Huawei —o principal alvo das pressões americanas.

Os testes foram feitos em Uganda, no Quênia e na Nigéria, todos com tecnologia da China (tanto da Huawei quanto da estatal ZTE). Madagascar também fez testes, mas usou a tecnologia da sueca Ericsson.

Em julho, o secretário de Defesa dos EUA, Mark Esper, afirmou que "a maré está virando" contra a China na disputa pelo mercado de 5G, referindo-se à exclusão da Huawei do fornecimento de infraestrutura crítica para a tecnologia no Reino Unido.

Além dos britânicos, Japão, Austrália e Brasil já mostraram que concordam com a premissa americana de que sistemas chineses são uma ameaça à cibersegurança dos países —por permitirem o vazamento de dados confidenciais para Pequim.

A Huawei é vista nos EUA como um ator estatal, apesar de não pertencer ao governo chinês. Fundada em 1987 por um ex-chefe militar, a empresa tem laços estreitos com o regime comunista.

Desde 2012, domina o mercado de infraestrutura para celulares e lidera o fornecimento de 5G no mundo, principalmente por oferecer soluções mais baratas do que a concorrência —hoje centrada na Ericsson, na finlandesa Nokia e na sul-coreana Samsung.

O 5G é a base da chamada internet das coisas. Assim como o 4G permitiu o florescimento de empresas em torno de um ecossistema de aplicativos e serviços, como as redes sociais, o 5G promete um salto ainda maior.

No Brasil, as quatro grande operadoras (Claro, Vivo, Oi e TIM) já fizeram testes de rede com a chinesa e suas concorrentes, mas uma ala do governo de Jair Bolsonaro comprou a briga geopolítica dos EUA. Com isso, o leilão do 5G, inicialmente previsto para novembro deste ano, só deve ocorrer em 2021, com prováveis restrições à empresa chinesa.

Para Cobus Van Staden, pesquisador sênior do Instituto de Relações Internacionais da África do Sul e especialista nas relações entre o continente e a China, é improvável que a pressão americana contra o 5G chinês se concretize na África.

Segundo ele, a Huawei já se tornou parte da vida africana e "em muitos casos a escolha é entre ela ou nenhuma internet".

"Não só os equipamentos da Huawei são mais acessíveis, mas quando a empresa negocia um contrato, ele é facilitado por financiamentos muito eficazes de bancos chineses que levam poucos meses para concretizá-los", afirma.

Além disso, o pesquisador diz que a necessidade de troca de equipamento, como o Reino Unido irá fazer, tornaria o banimento da Huawei inviável, já que a infraestrutura de telecomunicações de grande parte dos países africanos já tem a presença da empresa chinesa, que domina o 4G no continente.

"São equipamentos novos, que funcionam bem e que teriam que ser substituídos por outro equipamento para o qual não há financiamento."

Alison Gillwald, diretora-executiva do Research ICT Africa, think tank sul-africano de tecnologia e comunicações, também enxerga dificuldades para a pressão americana no continente.

Para ela, como os sul-africanos não são alinhados aos EUA, não há pressão política ou diplomática suficiente para que o país confronte o que as operadoras desejarem.

"O custo da comunicação é inatingível por grande parte da população e o 5G ainda mais. Trocar a tecnologia da Huawei para uma mais cara não faria sentido do ponto de vista comercial", afirma Gillwald.

Para o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, a escolha é bem clara.

"Os EUA foram incapazes de imaginar um futuro melhor que vá além do 4 mais um G", disse ele no ano passado. "Não podemos permitir que a nossa economia seja contida por causa dessa briga que os EUA estão tendo e que foi criada por causa de ciúmes."

O discurso forte veio após as quatro principais operadoras do país afirmarem que a possibilidade de Trump proibir empresas americanas de fazer negócios com a Huawei poderia gerar "consequências não desejadas e danosas" para elas, que são altamente ligadas à empresa chinesa.

No Quênia, o secretário de gabinete do Ministério das Comunicações, Joseph Mucheru, seguiu linha similar, mas de maneira menos agressiva. No início de agosto, ele afirmou que seu país é independente e não interromperia os testes com a Huawei.

"O governo não lida com fornecedores. São as operadoras que irão decidir com quem querem trabalhar", disse.

A cibersegurança não é uma preocupação menor no continente africano. Na verdade, é uma das 15 prioridades da União Africana em seu plano de desenvolvimento Agenda 2063.

Segundo o site da entidade, é preciso "assegurar que essas tecnologias sejam usadas para o benefício dos indivíduos, instituições e estados-nação africanos, assegurando a proteção de dados e a segurança online".

Em 2018, o jornal francês Le Monde publicou reportagem afirmando que dados dos sistemas de computadores da sede da União Africana, na Etiópia, estariam sendo transferidos durante seis anos para Shangai e acusava a Huawei, que forneceu a infraestrutura tecnológica do prédio, de estar envolvida.

A China e a Huawei negam, e a reportagem baseada em fontes anônimas não convenceu as autoridades da entidade, que estenderam em 2019 um memorando de entendimento para para ampliar a parceria técnica com a empresa.

Atualmente a África tem 1,3 bilhão de habitantes, sendo que quase metade é nascida depois de 2000. Até 2050, a população deve dobrar, levando o continente a contabilizar cerca de um quarto da população mundial.

É um mercado promissor para empresas de tecnologia, mas o quadro atual ainda é de baixa penetração da internet, especialmente nas áreas rurais.

Estimativas da União Internacional de Telecomunicações apontam que a África Subsaariana tinha 80 planos de celular e 34 planos ativos de banda larga móvel ativos a cada 100 habitantes.

No Brasil, por exemplo, os números de planos de celular ativos e planos com banda larga móvel são 106,8 e 93,3 para cada 100 habitantes, respectivamente.

Além de estar menos conectado, o continente lida com uma internet em velocidade bastante reduzida comparativamente.

Ainda assim, a professora Gillwald acredita que os países africanos não devem se atropelar no processo de desenvolvimento da nova tecnologia em nome de uma pretensa redução da desigualdade digital.

Segundo ela, o 5G atende apenas a uma restrita elite e, para evitar uma ampliação acentuada da desigualdade de acesso dentro de um mesmo país, será necessária uma forte política regulatória —que não aconteceu nos leilões de telecomunicações na África do Sul.

Um exemplo disso é a possibilidade de exigir que operadoras se comprometam a concluir a cobertura de 3G ou 4G em áreas rurais para ganhar autorização para operar o 5G.

Para alguns analistas, no entanto, a preferência pela Huawei pode minimizar a diferença natural no tempo de adoção do uso comercial do 5G por países africanos.

Para Staden, a empresa chinesa está tão à frente de seus competidores na oferta de infraestrutura e equipamento que os países que estão proibindo sua presença ou se vendo na obrigação de substituir infraestrutura já existente podem acabar atrasando sua disseminação. Enquanto isso países africanos não indicam estarem dispostos a perder tempo em questões ideológicas.

"Muitos países africanos estão incentivando o ambiente de startups de tecnologia, como o Quênia, a Nigéria e a África do Sul. Ainda que vá levar quase uma década para que certas áreas rurais sejam atendidas por 3G, nas cidades tem gente querendo 5G."

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