Angústias habitam mineiros chilenos 10 anos após resgate

Presos em mina por quase 70 dias lidam hoje com doença, desemprego e processos

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Buenos Aires

“Tento esquecer, mas, em algum momento do dia, eu me lembro de alguma imagem do confinamento. Deixei Copiapó na esperança de que essas imagens desaparecessem. Não queria encontrar gente que sabia que eu era um deles. Mas, hoje, mesmo longe, as imagens estão sempre dando voltas na minha cabeça”, diz à Folha Edison Peña, 44, um dos 33 mineiros chilenos que há dez anos foram resgatados da mina San José, a 30km de Copiapó, no deserto do Atacama.

Peña vive hoje na cidade litorânea de Las Ventanas, próxima a Valparaíso. Foi o 12º a ser resgatado na cápsula que tirou, um a um, os trabalhadores que ficaram presos a 720 metros de profundidade durante 69 dias, 6 horas e 51 minutos.

Ele ficou famoso por ser o mineiro que, mesmo num espaço pequeno, corria todos os dias. E também por, depois do resgate, exibir seu talento imitando Elvis Presley em programas de TV, entre os quais o talk show de David Letterman.

O acampamento que recebeu jornalistas e familiares dos mineiros durante o resgate em 2010
O acampamento que recebeu jornalistas e familiares dos mineiros durante o resgate em 2010 - Victor Ruiz Caballero - 8.out.10/ The New York Times

“Tudo foi muito rápido, a angústia de termos ficado ali e o sucesso que veio na sequência”, diz. “Depois, fomos esquecidos, nenhum de nós teve uma vida melhor. Tivemos de voltar a nos esforçar para sobreviver. Eu quis trabalhar como mineiro de novo, mas quando ia pedir emprego diziam ‘não’, achavam que eu podia ter problemas psicológicos ou até trazer azar.”

Em Las Ventanas, Peña sobrevive de bicos e nunca mais teve um emprego fixo. “É estranho ter estado num dos programas de maior audiência dos EUA e, depois, não acontecer nada. Sinto-me usado.”

O soterramento ocorreu depois de uma explosão que bloqueou a saída dos mineiros. A mina San José, na qual exploravam cobre e ouro, tinha um histórico de acidentes. Uma outra explosão em 2007 provocou a morte de um trabalhador.

Pertencia à empresa San Esteban, que, para compensar os problemas de segurança do local, oferecia salários mais altos do que outras companhias.

“Nós sabíamos que era perigosa, mas íamos porque receberíamos mais e porque trabalhar na San José dava visibilidade. Era sinal de valentia”, diz Jorge Galleguillos, 66, o 11º a ser resgatado. Até pouco tempo atrás, ele trabalhava na prefeitura, levando turistas para visitar a mina. Queria transformá-la num passeio regular e com estrutura aos visitantes —mas veio a pandemia.

A crise da Covid-19 também tem impedido Ariel Ticona, 39, o 32º a ser resgatado, de fazer uma das coisas que mais gosta: tocar flauta na igreja.

Ticona soube do nascimento de sua filha enquanto estava sob a terra. Ele e a mulher haviam decidido batizar a filha de Carolina, mas a mãe resolveu chamá-la de Esperanza. Assim, pensou ela, o marido seria resgatado. “Sou muito religioso e me sinto orgulhoso de que Deus tenha me escolhido para mostrar às pessoas que ele existe e que é capaz de fazer milagres.”

Hoje, ele trabalha com construção e diz que nem havia se lembrado da efeméride. “Ainda tenho pesadelos lembrando da escuridão, da fome, mas procuro colocar foco e oração nos problemas de hoje. Mas a cada tanto vem uma chuva de ligações e pedidos de entrevistas. É quando me dou conta de que chegou mais um aniversário do acidente”, afirma.

Ticona, como muitos, ainda vive em Copiapó. Foi um dos últimos a serem resgatados, porque era o responsável pelas comunicações —ele saiu da cápsula erguendo o telefone com que manteve contato com a equipe de resgate.

“Nós nos ajudávamos. No começo, o mais importante era fazer algum ruído que desse sinal à superfície de que estávamos vivos”, lembra ele.

“Batíamos nos canos com metais, fazíamos ruídos com as mangueiras, chegamos até a explodir uma dinamite.”

Lembra da enorme alegria quando estabeleceram contato com o exterior. “Na mina, experimentamos de tudo, alegria, tristeza, até nos divertíamos. Os primeiros 17 dias foram os de maior angústia, mas também de maior união e de coleguismo entre nós.”

Dez anos depois do resgate, a realidade dos mineiros chilenos é tão ou mais difícil do que antes do acidente. José Ojeda, 56, autor do bilhete que causou tanta euforia nos chilenos quando surgiu na superfície, é o que está com a saúde mais deteriorada.

Ele, que escreveu em vermelho a mensagem “estamos bien en el refugio los 33” (estamos bem, no refúgio, os 33), tem neuropatia diabética e nunca pôde voltar a trabalhar. Perdeu muito peso e caminha com dificuldade. Responde a perguntas de modo muito breve.

“Esperávamos mais, porque quando saímos fizeram tanta festa... Acreditávamos que nossa história nos deixaria ricos ou que pudéssemos, com ela, ajudar nossas famílias. Isso não aconteceu”, diz.

Num primeiro momento, vários dos mineiros foram convidados a viajar a diversas partes do mundo —Inglaterra, Israel, Estados Unidos, entre outros. Também foram assediados por um grupo de advogados que lhes prometeu contratos por filmes e livros.

O único que teve projeção internacional foi “Os 33”, de 2015. Filme de qualidade duvidosa, tem o espanhol Antonio Banderas como protagonista.

O advogado Alejandro Peña, que representa 13 dos 33 mineiros, explica que, num primeiro momento, não houve responsabilização penal de ninguém, “a Justiça concluiu que havia sido um acidente”.

“Entramos, então, com ações diferentes, uma contra o Estado, porque, apesar de a mina ser privada, entendemos que o Estado tem de vigiar e regulamentar a segurança desses locais de trabalho”, afirma Peña. “Depois, contra os advogados que os fizeram assinar coisas que não sabiam o que eram, e que, no fundo, foi um roubo de seus direitos sobre sua própria história. Estamos processando eles por fraude.”

Peña afirma que os advogados Remberto Valdés e Fernando García formaram sociedade para representar os mineiros quando eles ainda estavam dentro da mina, sem nem mesmo conhecê-los.

Além do fato de, segundo o advogado, eles não terem realizado os pagamentos devidos pelo uso da história, a dupla também cobrou os mineiros de modo retroativo, pelo tempo em que teriam trabalhado antes do resgate.

“Eles foram convencidos a assinar papéis pela confusão geral causada pela própria cobertura midiática, que os fez crer que seriam heróis para sempre”, afirma o representante atual dos trabalhadores.

Hoje, os mineiros recebem uma pensão vitalícia do estado no valor de US$ 527 (R$ 2.914).

O psiquiatra Alberto Iturra, que os acompanha, diz que mesmo quem deu a volta por cima ficou abalado para o resto da vida. Alguns, afirma ele, convivem melhor, enquanto outros potencializaram depressões ou outras doenças que carregavam antes.

“É normal que seja assim, não concordo com essa leitura de que todos estão pior e ponto. É um modo raso de entender, pois todos traziam uma história pregressa, também de sofrimento e de superação”, diz ele. “Então, para os que aprendem a conviver com a memória, as coisas não estão piores. O que eles demonstram, sim, é que têm muita coragem, a mesma que os fez sobreviverem na mina.”

Durante o resgate, que durou 22 horas e 36 minutos, em 12 e 13 de outubro de 2010, o Chile praticamente não dormiu. Pela TV, mais de 1,3 bilhão de pessoas em todo o mundo acompanharam o retorno dos mineiros à superfície.

O resgate custou ao todo US$ 29 milhões (R$ 160 milhões). Desse valor, dois terços foram financiados pelo Estado, e o resto por doação de empresas privadas de mineração.

Houve festa quando a operação terminou, e muitos foram à Plaza Italia, local tradicional de protestos e comemorações no Chile e hoje palco de grandes manifestações contra o governo.

O atual presidente do Chile também é o mesmo da época do resgate. Sebastián Piñera, que comandou a operação de olho na publicidade de sua imagem, hoje está pressionado pela situação social e pela má performance diante da pandemia de coronavírus.

Piñera deve olhar para o episódio dez anos depois com saudade dos 63% de popularidade que atingiu logo após o resgate.

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