Candidatura de pastor no Equador reforça domínio evangélico na América Latina

Para sociólogo, 2018 marcou um antes e depois na participação política na região

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Rio de Janeiro

A candidatura de um pastor à Presidência do Equador fortalece um fenômeno familiar ao Brasil e que se espraia pela América Latina: a ascendência de vozes terrivelmente evangélicas no debate político.

Em 1º de outubro, Gerson Almeida, um curitibano radicado em Quito, oficializou a entrada na eleição que o país realizará em 2021. Tem respaldo do Ecuatoriano Unido, movimento de Edwin Moreno, irmão do atual presidente, Lenín Moreno. "Este é o primeiro passo para uma mudança nacional, vamos pela vida", declarou o autointitulado candidato pró-vida. "Que Deus tenha misericórdia desta nação."

Em espanhol ou português, é um discurso que se calcifica na vizinhança desde 2018, diz o sociólogo peruano José Luís Pérez Guadalupe, co-organizador do recém-lançado "Novo Ativismo Político no Brasil: Os Evangélicos do Século 21". "Definitivamente, 2018 marcou um antes e depois na participação política dos evangélicos na América Latina", diz à Folha.

Gerson Almeida, pastor brasileiro que disputará eleição presidencial no Equador
Gerson Almeida, pastor brasileiro que disputará eleição presidencial no Equador - Gerson Almeida no Facebook

Os exemplos vêm aos montes, e a vitória de Jair Bolsonaro, um católico que chegou a ser batizado nas águas do rio Jordão pelo hoje preso Pastor Everaldo (PSC-RJ), é a ponta de lança desse movimento.

No mesmo ano, no México, o presidente Andrés Manuel López Obrador se aliou ao evangélico Partido Encontro Social. Desaguou até na Costa Rica, o país menos adepto dessa fé na região: lá liderou a votação no primeiro turno o deputado e cantor gospel Fabricio Alvarado.

"A Costa Rica enviou uma mensagem aos partidos tradicionais: nunca mais interferirão na família", disse então o político que, dois anos antes, lançava o louvor a Deus "Tú Eres Mi Papá".

Alvarado subiu nas pesquisas ao sugerir que a Costa Rica deveria abandonar a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que se manifestara a favor da união homoafetiva. Acabou derrotado por outro Alvarado, o Carlos, um ex-cantor de rock. Mas o rugido conservador não passou batido.

E ecoou também na Venezuela quando, naquele mesmo ano, um pastor se candidatou a presidente sob a premissa de ser "luz no meio da escuridão". Javier Bertucci amealhou 1 milhão de votos, longe dos 6,2 milhões do ditador Nicolás Maduro num pleito de lisura questionável. Ainda assim, a marca surpreendeu.

Em 2019, a senadora evangélica Jeanine Añez ocupou a Presidência da Bolívia após Evo Morales e seu vice, Álvaro García-Linera, renunciarem sob pressão das Forças Armadas e de manifestações populares. Ao assumir o cargo, subiu a escadaria do palácio do governo com uma Bíblia.

No Peru de hoje, as pesquisas dão vantagem para uma estrela do futebol nacional, o goleiro aposentado George Forsyth. Ele concorre pelo Restauración Nacional, partido fundado pelo pastor Humberto Lay.

Na América Central, Nicarágua, Honduras, El Salvador e Guatemala ultrapassam 40% da população adepta dessa crença. Na América do Sul, é o Brasil que mostra mais fôlego para reverter a maioria católica, que já monopolizou a religiosidade nacional e hoje caiu para a metade do povo.

Não é só na demografia que o grupo cresce. A relevância social que seus membros adquiriram nesses anos, para Guadalupe, engloba vários fatores: o abandono do "complexo de minoria" que lhes era característico, o acesso às classes média e alta da sociedade, a troca de "templos de fundo de quintal" por megaigrejas em áreas residenciais, a invasão da mídia e a entrada na política partidária.

O segmento é bom em fazer barulho, mas tende a ser subrepresentado nas Américas. O Brasil é um bom exemplo. "É o país de maior sucesso em termos de incursão política [dessa religião], mas a bancada evangélica chega a apenas 16%, enquanto evangélicos são 32% da população", diz Guadalupe.

Se há paralelos possíveis, falta uma unidade evangélica entre latino-americanos, segundo o sociólogo. Vide a tentativa de expansão regional da Igreja Universal, por meio do mote em espanhol "pare de sufrir".

Seria o único experimento de relevo para uma "colonização religiosa" no continente, afirma. "Tem sido um tremendo fracasso, sem o êxito religioso, comercial e político que alcançaram no Brasil."

Ainda que se unam em prol de uma agenda moral, evangélicos não são conhecidos pela coesão interna —o que lhes dá vantagem adaptativa na política, diz a guatemalteca Brenda Carranza, co-organizadora do livro com Guadalupe e coordenadora do Laboratório de Antropologia da Religião da Unicamp.

"A fragmentação e a autonomia lhes permitem assumir livremente compromissos com determinados partidos e abandoná-los caso se desentendam com as lideranças religiosas", afirma ela. "Isso entre católicos não é possível pelo modelo eclesiocêntrico no qual ninguém pode falar em nome da Igreja."

Ou seja, entre este outro filão do cristianismo não há um Vaticano para ordenar como cada agente deve se comportar.

E é preciso saber diferenciar políticos evangélicos dos evangélicos políticos que atuam na região, afirma Guadalupe. Para ele, o primeiro grupo entra na política mantendo seus princípios cristãos, "como pode haver políticos católicos, políticos marxistas, políticos liberais etc.". Já o segundo busca capitalizar sua liderança religiosa na arena eleitoral.

Os primeiros, segundo o peruano, agem como cidadãos, e os últimos, como congregação ou devotos.

O típico evangélico político, como Guadalupe escreve no livro, é "um fiel que busca tornar todas as políticas estatais cristãs confessionais e não faz distinção entre templo e Parlamento, nem entre púlpito e assento ou mesmo se lembra do mandamento de Jesus de Nazaré de '...dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus'. É por isso que eles colocam a Bíblia acima da Constituição em sua ação política, indicando que toda a criação é de Deus e, portanto, deve ser submetida à vontade divina".

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