Cinquenta dias antes da eleição americana, a Folha começou a publicar a série de reportagens “50 estados, 50 problemas”, que se debruça sobre questões estruturais dos EUA e presentes na campanha eleitoral que decidirá se Donald Trump continua na Casa Branca ou se entrega a Presidência a Joe Biden.
Até 3 de novembro, dia da votação, os 50 estados do país serão o ponto de partida para analisar com que problemas o próximo —ou o mesmo— líder americano terá de lidar.
Faz sentido presumir que o estado mais rico do país mais rico do mundo não tem problemas financeiros. Em Connecticut, no entanto, o buraco é mais embaixo.
O estado aproveitou o pico das duas indústrias que mais geraram riqueza nos Estados Unidos no século 20: a manufatura, na primeira metade do século, e o setor financeiro, a partir do fim dos anos 1970.
Como consequência, governos republicanos e democratas pouparam pouquíssimo ou nada nos 80 anos que se seguiram à década de 1930 —e Connecticut se viu imerso numa crise orçamentária em boa parte dos últimos dez anos, da qual ainda se empenha em sair.
Mesmo figurando em segundo lugar no ranking de impostos mais caros do país —US$ 7.869 (R$ 43,97 mil) por pessoa a cada ano—, o estado tinha dificuldade de pagar suas contas.
Em 2018, 85% do arrecadado com impostos foram destinados a quitar dívidas; hoje, ainda deve US$ 85 bilhões (R$ 475 bilhões). A capital, Hartford, chegou perto de declarar falência mais de uma vez.
“Historicamente, quando a economia ia bem e o dinheiro dos impostos estava entrando, os legisladores e governadores sempre achavam um jeito de gastar os dólares extras”, diz Kevin Lembo, controlador-geral do estado. “Isso não é uma questão partidária. Houve irresponsabilidade de democratas e republicanos.”
Desde 2011 no cargo —que nos EUA é definido via eleição—, Lembo vem tentando reparar o estrago.
Em 2015, conseguiu que o Legislativo local aprovasse sua proposta de aumentar progressivamente a poupança advinda do imposto de renda. Como resultado, o fundo emergencial de Connecticut passou de algumas centenas de milhões de dólares, no final daquele ano, para US$ 3 bilhões (R$ 16,76 bi), agora.
Foi um golpe de sorte. O imposto de renda arrecadado no estado é extremamente volátil, uma vez que os moradores mais ricos —em sua maioria, gestores de fundos ou donos de imobiliárias— têm renda que varia com a Bolsa. Quando o mercado de ações cai, o orçamento estadual também despenca.
De certa forma, Connecticut espelha os EUA, país com o maior PIB do mundo e também com a maior dívida pública (US$ 27 trilhões, ou R$ 150,8 trilhões em setembro). Comparado a outros estados, porém, destoa: ainda que Pensilvânia e Nova Jersey, por exemplo, viessem lidando com um quadro deficitário crônico e estrutural, a maior parte do país se recuperou relativamente bem da recessão de 2008-2009.
“A situação em Connecticut é preocupante e não é a norma em termos de ordem de grandeza e de gravidade do rombo fiscal”, diz Tatiana Teixeira, editora do Observatório Político dos EUA. Com a crise da Covid-19, no entanto, é provável que outros estados experimentem níveis inéditos de desconforto fiscal.
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Desde que o Partido Democrata voltou a ocupar o governo de Connecticut —com as gestões de Dannel Malloy, de 2011 a 2019, e Ned Lamont, desde 2019—, a pauta orçamentária voltou a ser prioridade.
A gestão Malloy foi marcada por planos de austeridade fiscal: em seu segundo mandato, ele se afastou dos orçamentos baseados no aumento de impostos sobre os contribuintes mais abastados e sobre as empresas e focou o corte de gastos sociais, argumentando que a medida seria inevitável diante da recuperação apática da recessão anterior (entre 2010 e 2019, o PIB do estado cresceu apenas 1,1%).
Por outro lado, investiu em políticas antipunitivistas, que eliminaram gastos com o sistema carcerário.
Seu sucessor, Ned Lamont, faz um jogo parecido, intercalando medidas progressistas com afagos à elite financeira. Prometendo enfrentar a dívida do estado com um orçamento sustentável, ele evitou cortes em programas sociais e promoveu uma campanha para aprovar o aumento do salário mínimo para US$ 15 (R$ 83) por hora de trabalho; por outro lado, manteve o peso do sistema tributário sobre trabalhadores e aposentados, com pouco impacto sobre grandes fortunas do mercado financeiro.
“Fora do eixo do mercado financeiro, os trabalhadores [em Connecticut] estavam empregados em posições com salários baixos [antes da pandemia de Covid-19], sobretudo nos setores de varejo e serviço, uma realidade estrutural para negros e latinos que passou a atingir também as famílias brancas”, explica Roberto Moll, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Em geral, esse tipo de emprego não oferece nenhuma estabilidade e nenhum tipo de benefício, como assistência saúde e alimentação.”
A presença de um grupo diminuto e extremamente rico, que faz fortuna em Wall Street, mas dorme nos calmos subúrbios de Connecticut, gerou a distorção demográfica que faz com que o estado tenha a maior renda per capita dos EUA (US$ 43 mil por ano, ou R$ 240 mil) ao mesmo tempo que projeta desigualdade social a um patamar inédito em sua história.
Em Connecticut, os 1% mais ricos ganham 44 vezes mais que a média dos outros 99%. No condado de Fairfield, enclave da elite financeira, ganham 77 vezes mais. O estado é o segundo mais desigual do país, atrás apenas de Nova York —e a desigualdade retroalimenta o sufoco fiscal, já que faz com que uma parte maior da população não tenha como pagar impostos e dependa de recursos do governo.
Os gestores de fundos, cuja renda média chega a US$ 6 milhões (R$ 33,5 milhões) ao ano nas cidades mais abastadas, pagam proporcionalmente muito menos impostos que a população mais pobre e se beneficiam, há quase 30 anos, de uma lei que passou a taxar dividendos como parte do imposto de renda —o que, na prática, diminuiu em três vezes o que eles pagavam ao governo.
“Connecticut ilustra muito bem as contradições dos EUA como país”, diz Neusa Bojikian, professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP). Para além da desigualdade galopante, “os problemas do estado são decorrentes de mudanças estruturais vistas com os ciclos econômicos, a contração da classe média e os padrões de migração da população interna”.
Com os reajustes do mercado financeiro após a Grande Recessão, a concentração de renda piorou no país inteiro. “O número de empregos voltou a crescer nos grandes centros urbanos, mas a qualidade deles piorou”, explica Bojikian. “O nível de renda dos trabalhadores sofreu uma queda brutal desde então. Portanto, a capacidade de contribuição tributária desses trabalhadores foi fortemente reduzida.”
Entre 2010 e o começo de 2020, Connecticut teve a pior retomada entre os estados vizinhos da chamada Nova Inglaterra —Vermont, New Hampshire, Maine, Massachussetts e Rhode Island. Catorze por cento dos empregos perdidos na crise nunca foram recuperados. A recessão atual, motivada pela pandemia, conta uma história parecida, mas muito mais grave. Somente em abril, o estado perdeu 269 mil empregos, mais do dobro do que havia criado durante toda a década anterior.
Parte dessas vagas já foi recuperada, mas o desemprego segue alto —10%, segundo os dados oficiais, e entre 16% e 17%, nas estimativas do controlador Lembo. Em setores que colapsaram, como os de restaurantes e de hotelaria, cerca de um terço dos trabalhadores perdeu o emprego. Lembo projeta que o déficit para o ano fiscal em curso —que termina em junho de 2021— seja de US$ 1,8 bilhão (R$ 10 bi).
“A arrecadação do estado caiu, e os gastos com programas sociais e assistência social subiram, elevando a pressão tributária sobre os trabalhadores de classe média —já em processo de pauperização— e o mantra por redução dos gastos públicos”, analisa Roberto Moll, da UFF. “O cenário é imprevisível. Dependerá da recomposição do emprego e da renda no estado e do suporte do governo federal.”
Um terço dos assentos no Senado está em jogo nas eleições gerais do dia 3 de novembro. Há uma expectativa de que, caso os democratas elejam senadores suficientes para virarem maioria na Casa, estados como Connecticut se beneficiem de pacotes de estímulos e até mesmo perdão fiscal.
Lembo contempla essa possibilidade, mas é categórico ao afirmar que não pode contar com ela.
“Mesmo se as duas câmaras do Congresso virarem democratas, elas vão funcionar num ambiente tão tóxico, tão desgastado, que vai ser muito difícil trabalhar de forma eficiente”, diz.
“É uma ilusão acreditar que depois do dia da eleição tudo vai ser diferente, que vai haver uma transição suave de poder e que não vamos passar semanas ou meses presos no tribunal.”
Caso isso ocorra, o orçamento de Connecticut sofrerá um novo baque. A instabilidade política passaria incerteza ao mercado, o que faria a bolsa cair, e a arrecadação de impostos, também.
Para o controlador, a prioridade deve ser recuperar as pequenas empresas, que considera serem a espinha dorsal da economia do estado: garantem o sustento contínuo do governo, tornam possível a existência de uma classe média e geram empregos numa proporção muito maior que o mercado financeiro.
Ele defende que Connecticut se aproprie do que já tem de bom. Lar de universidades como Yale e Wesleyan (de artes), é o estado com a maior proporção de PhDs no país; também foi considerado o quarto estado mais inovador pela Bloomberg.
Aprovar políticas que incentivem os recém-graduados a permanecerem lá —em vez de irem para as vizinhas Nova York e Boston— seria um bom jeito de gerar riqueza interna, diz. Por enquanto, e apesar de tudo, o fundo emergencial de US$ 3 bilhões deve ajudar a amortecer as perdas da crise. “Estamos num bom lugar conforme deixamos a [crise da] Covid e adentramos seja lá qual for a nova realidade."
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