Cinquenta dias antes da eleição americana, a Folha começou a publicar a série de reportagens “50 estados, 50 problemas”, que se debruça sobre questões estruturais dos EUA e presentes na campanha eleitoral que decidirá se Donald Trump continua na Casa Branca ou se entrega a Presidência a Joe Biden.
Até 3 de novembro, dia da votação, os 50 estados do país serão o ponto de partida para analisar com que problemas o próximo —ou o mesmo— líder americano terá de lidar.
Imagine um país onde parte da população vive a um passo da ruína financeira porque, se um dia tropeçar e quebrar o pé, terá que se endividar para pagar a conta do hospital.
Bem-vindo aos EUA, uma nação que não tem sistema público de saúde e na qual os planos têm preço proibitivo e não cobrem totalmente diversos tipos de tratamento.
Segundo as últimas estimativas, cerca de 28 milhões de americanos não têm nenhum tipo de seguro de saúde. Ou seja, eles não se encaixam no programa Medicare (que atende quem tem deficiência ou mais de 65 anos), não preenchem os requisitos do Medicaid (direcionado a pessoas com renda muito baixa) e não conseguem pagar um convênio médico —nem têm um empregador que banque o custo.
Em meio à pandemia que matou 208 mil pessoas e infectou 7,3 milhões nos EUA, entre os quais 410 mil tiveram de ficar internados, o problema do acesso a atendimento médico se tornou ainda mais premente.
Muitos terão sequelas da Covid-19 que exigirão assistência por anos, e outros tantos vão perder seus planos de saúde ao ficarem desempregados na esteira da recessão causada pela crise sanitária.
Segundo pesquisa do Pew Research Center de agosto, 79% dos americanos afirmam que a economia é um tema muito importante para decidir o voto. Acesso à saúde vem na sequência (68%), seguido de indicação para a Suprema Corte (64%), pandemia de Covid-19 (62%) e crimes violentos (59%).
O ex-presidente Barack Obama, em seu governo, tentou solucionar o problema da saúde ao criar a Lei de Tratamento Acessível, conhecido como Obamacare. O plano combina aspectos de mercado e estatais —amplia o número de pessoas de baixa renda cobertas pelo Medicaid e oferece subsídios para indivíduos até determinada faixa de renda comprarem seus seguros em um mercado de convênios.
Também proíbe os planos de saúde de barrarem pacientes com doenças pré-existentes ou adotarem limites no valor da cobertura. Antes da lei, pessoas com diabetes ou câncer viam-se obrigadas a pagar grande parte das despesas médicas mesmo quando tinham convênio, por conta do teto de cobertura.
Para que isso seja economicamente viável às empresas do setor, passou a exigir que a maior parte das pessoas tenha —e pague— um plano de saúde. Como consequência do Obamacare, o número dos americanos não idosos sem plano de saúde caiu de 46,5 milhões em 2010, ano em que a lei foi adotada, para cerca de 27 milhões em 2016. Hoje está em cerca de 28 milhões.
Mas, segundo pesquisa recente da KFF (Kaiser Family Foundation), que divulga informações sobre questões de saúde, a lei ainda é polêmica: 42% das pessoas rejeitam a medida. Muitos são contra o Obamacare porque estão em uma faixa de renda acima da coberta pelo Medicaid e dizem que a regra imposta aos planos para ampliar a cobertura encareceu os convênios de maneira geral.
A exigência de que a maioria dos americanos tenha convênio é a parte mais impopular da lei, principalmente entre republicanos. Muitos consideram a medida um excesso de intervenção do Estado.
O presidente Donald Trump, por meio do Departamento de Justiça, aliou-se a estados governados por republicanos e, em junho, interpelou a Suprema Corte para derrubar a lei, já enfraquecida em seu governo.
A ação será analisada pelo tribunal no dia 10 de novembro —uma semana após a eleição, que ocorre no dia 3. Daí a importância da escolha da magistrada que substituirá a progressista Ruth Bader Ginsburg.
Trump indicou para o posto a juíza conservadora Amy Coney Barrett, que criticou a decisão da Suprema Corte, em 2012, para manter a legislação. O Senado ainda precisa votar a confirmação de Barrett no posto.
O rival de Trump na eleição, Joe Biden, abraçou o tema em sua campanha e argumenta que, caso Barrett seja confirmada no tribunal, será o fim do Obamacare. O problema, argumenta o democrata, é que Trump quer acabar com o Obamacare, mas não propôs nada para colocar no lugar.
Se a Lei de Acesso ao Tratamento for derrubada, cerca de 21 milhões de americanos hoje cobertos pelo Medicaid ou que recebem subsídios para pagar seus convênios médicos deixariam de ter plano de saúde.
Além disso, os cerca de 133 milhões de americanos com doenças pré-existentes poderiam perder seus planos ou ver o preço explodir, segundo levantamento do Congressional Research Service.
Em agosto, Trump decretou a proibição da exclusão ou do aumento no custo dos convênios de pessoas com doenças pré-existentes —mas a ação não tem poder de lei, e ele não esclareceu como irá aplicá-la.
O presidente se limita a prometer algo “muito melhor e mais barato” do que o Obamacare, o que seria “uma grande vitória para os EUA”, conforme escreveu no Twitter recentemente.
Em sua plataforma de campanha, ele oferece propostas vagas para a área, como “colocar pacientes e médicos de volta no controle do sistema de saúde, baixar o custo dos convênios médicos, cobrir todas as doenças pré-existentes”.
Biden promete criar uma opção de convênio médico bancado pelo Estado para as pessoas que não são cobertas pelo Medicaid e não conseguem pagar o plano de saúde com subsídios.
Enquanto o problema não é resolvido, alguns estados americanos tentam adotar programas inovadores. A Carolina do Norte, por exemplo, está implementando o programa “Oportunidades Saudáveis”.
O estado foi um dos 14 que se negaram a expandir a cobertura do Medicaid para população de baixa renda, por decisão da Assembleia Legislativa controlada por republicanos.
Mas o governador democrata conseguiu transformar a derrota em vitória —direcionou parte dos recursos do Medicaid para um programa que investe em segurança alimentar, combate a violência doméstica, auxílio-moradia e transportes, em uma visão mais abrangente da saúde da população.
Também trabalha para eliminar incentivos que os planos de saúde dão para procedimentos médicos desnecessários, o que aumenta o faturamento, e passou a recompensar o valor do atendimento prestado.
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