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Como a Argentina se tornou um dos cinco países com mais casos de Covid-19 no mundo

Especialistas apontam que propagação da doença pelo interior e falta de cuidados dos mais jovens contribuíram para agravamento do surto

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Marcia Carmo
Buenos Aires | BBC News Brasil

Até pouco tempo, a Argentina era um dos países com menos casos de coronavírus, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins. Mas a situação mudou radicalmente. Em questão de semanas, o país galgou várias posições no ranking e ultrapassou nações como Espanha, México, Chile, Peru e Colômbia.

Paciente entubado em hospital infectado pelo novo coronavírus
Argentina é o 5º país do mundo com mais casos e o 12º em óbitos - EPA

Hoje, o país é o quinto com mais registros de coronavírus no mundo, com mais de 1 milhão, embora seja o 12º no total de óbitos, com 27.110. Em um discurso transmitido pela TV, o presidente Alberto Fernández disse que, apesar da curva de contágio na região metropolitana da capital Buenos Aires, que já chegou a concentrar 85% dos infectados, ter se estabilizado, o coronavírus "se espalhou por toda a Argentina".

O médico argentino Oscar Cingolani, professor da Johns Hopkins, destaca que o país está hoje entre as nações com os maiores índices de novos casos por milhão de habitantes. Ressalta ainda que a dinâmica da crise lá foi diferente da de outros países que atualmente estão entre os mais afetados pelo coronavírus.

"Ao contrário do Brasil e dos Estados Unidos, a Argentina não teve um pico inicial", diz Congolani. "Agora, os casos estão caindo no Brasil, e, na Argentina, observamos um crescimento lento e constante."

Quarentena nacional e obrigatória

Poucos dias após a confirmação do primeiro caso do novo coronavírus na Argentina, Fernández implementou, em 20 de março, uma quarentena nacional e obrigatória. Também reuniu uma equipe de infectologistas e passou a falar quase semanalmente sobre a importância da prevenção à Covid-19.

O uso de máscaras foi logo popularizado e era raro ver alguém sem uma nas ruas do país.

O governo espalhou cartazes pedindo que as pessoas ficassem em casa, suspendeu voos domésticos e internacionais e restringiu o uso de transporte público, que passou a ser exclusivo de trabalhadores essenciais, como profissionais de saúde e funcionários de supermercados.

Nos primeiros meses, as medidas contaram com a adesão de grande parte da população. Governadores e prefeitos seguiram as orientações do presidente, mesmo aqueles que fazem oposição ao governo.

"A quarentena ajudou o país a reforçar seu sistema de saúde e a evitar várias mortes", diz Congolani.

Recordes de casos e morte

Mas os dados oficiais mostram que a pandemia no país nunca esteve tão grave quanto agora, quase oito meses depois de a pandemia atingir a Argentina. Na quinta (15), foi registrado o maior número diário de novos casos: 17.096. O recorde de mortes foi em 9 de outubro, com 515 óbitos em um único dia.

Um dos motivos para esse agravamento foi a propagação do coronavírus pelo interior do país, diz Omar Sued, presidente da Sociedade Argentina de Infectologia. Até pouco tempo atrás, praticamente não havia casos da doença no interior. Mas a reabertura no início de setembro foi feita sem os mesmos protocolos aplicados na Cidade Autônoma de Buenos Aires, a capital do país, e na Província de Buenos Aires.

A falta de precaução tornou o interior um terreno fértil para o avanço da Covid-19. "Hoje, a situação é delicada", diz Sued. No interior, as condições para a realização de testes de coronavírus são, muitas vezes, mais limitadas. A isso se soma o fato de as pessoas já estarem cansadas de cumprir o confinamento.

Para Sued, que faz parte da equipe de infectologistas que assessora a Presidência, outro fator que dificulta ainda mais o combate à pandemia agora é que os governadores da oposição já não demonstram a mesma disposição de agir em sintonia com as orientações sanitárias do governo federal.

"Alguns estimulam até o uso de remédios que ainda não tiveram seu efeito comprovado", diz.

'Dois países'

O presidente argentino, Alberto Fernández, durante entrevista coletiva em Buenos Aires
O presidente argentino, Alberto Fernández, durante entrevista coletiva em Buenos Aires - Juan Mabromata - 12.ago.20/AFP

O médico Marcelo Nahin, coordenador de transplantes do Hospital de Alta Complexidade El Cruce, diz que a Argentina se comportou como se fosse na verdade dois países.

"Enquanto os casos estavam concentrados na região metropolitana de Buenos Aires, as pessoas no interior do país levavam vida quase normal. Saíam para jantar e faziam encontros familiares", diz ele.

O médico avalia que isso contribuiu para a circulação do vírus. Ao mesmo tempo, as barreiras em estradas e aeroportos, criadas por vários municípios e províncias para impedir ou limitar a entrada de quem não morava nestes locais, parecem não ter surtido os efeitos esperados.

Nahin observa que a média de idade dos infectados na Argentina é de 36 anos, o que indica que os mais jovens relaxaram na prevenção por acreditarem que seriam menos afetados pelo vírus.

Enquanto os idosos tomaram mais cuidados, os mais jovens continuaram saindo de casa normalmente e podem ter passado o vírus para familiares, diz Nahin. Os críticos da longa quarentena realizada no país dizem ainda que, ao longo desse tempo, a população perdeu o medo de contrair a Covid-19.

Junto com isso, a necessidade de sair para trabalhar, em um país onde a informalidade atinge mais de 40% da população economicamente ativa, também falou mais alto, observa Adolfo Rubinstein, que foi ministro da Saúde do governo de Mauricio Macri, opositor de Fernández.

Rubinstein disse que a quarentena "foi muito longa" e que, na prática, deixou de ser respeitada dois ou três meses depois de seu início. "Confinamento tem limites. Se a Argentina tivesse realizado mais testes de coronavírus, poderia ter isolado os que deram positivo e evitado a proliferação do vírus. O recurso da quarentena, como medida preventiva, foi exagerado e ainda afetou a economia do país", diz ele.

Sued, por sua vez, afirma que, com a quarentena, o país pôde construir 12 hospitais e ampliar a realização de testes nos últimos meses de 300 para 25 mil exames diários. "Para um país com limitações financeiras, não estamos fazendo pouco. Ao contrário", diz Sued. Até aqui, os especialistas concordam que, apesar de preocupante, o sistema de saúde argentino não tende a "colapsar".

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