Trump e Bolsonaro se parecem em muitas coisas, mas diferem totalmente na relação com o corpo.
O presidente brasileiro gosta de se comunicar como um simples mortal. Aproveita qualquer oportunidade para exibir a curiosos a cicatriz na barriga decorrente da facada que levou durante a campanha.
Orgulha-se do histórico de atleta, mas vive reclamando de exames em hospitais e de cansaço. Vira e mexe, paralisa Brasília e a Faria Lima espalhando rumores sobre possíveis doenças, graves ou passageiras.
Já Donald Trump, 74, um misófobo convicto, que dorme e acorda de terno e gravata e nunca mostrou uma única parte do corpo abaixo do pescoço —fora mãos e braços, claro—, sempre cultivou a imagem de uma estátua grega, imaculada e perfeita.
Todos os anos, médicos suspeitos publicam relatórios sucintos atestando sua invejável forma física e intelectual. As raras visitas a hospitais servem apenas para confirmar suas extraordinárias aptidões.
Apresentado como um semideus por seus militantes, Trump passou toda a campanha desafiando a vivacidade de Joe Biden, que ele chama de “Sleepy Joe”, ou "Joe Dorminhoco".
No debate desta semana, o presidente tentou caricaturar o candidato democrata como um idoso que, aterrorizado pela doença, usava “a maior máscara que eu já vi”.
A campanha republicana gastou milhões em publicidade para mostrar Biden como lento, inepto, cansado. Neste fim de semana, Trump se preparava para desafiar as recomendações de especialistas em saúde outra vez e organizar uma serie de eventos públicos de campanha, desta vez na Flórida e em Wisconsin.
Agora, o diagnóstico de Covid-19 coloca Trump num dilema. Se cessar todas as atividades e respeitar a quarentena, a magia do homem invencível corre o risco de evaporar num momento decisivo da campanha.
Para toda a comunidade de céticos do coronavírus, o enfraquecimento seria um choque de realidade.
Por outro lado, se Trump decidir ultrapassar todos os limites e quebrar o isolamento, os conservadores mais vulneráveis à Covid, e não são poucos, podem se insurgir. Tido como pouco provável devido ao controle de Trump sobre a sua base, esse cenário virou realidade depois do debate desta semana.
Reações até de veículos conservadores indicam que a postura hiperagressiva contra Biden teve um efeito contraproducente, quase suicida. Ao atacar a saúde, a família e a integridade do democrata, o republicano agrediu o candidato que melhor encarna o seu eleitorado —branco, suburbano, acima de 50 anos.
Pode parecer contraintuitivo, mas, diante de Trump, o maior argumento de Biden é a sua fragilidade.
Com a infeção de coronavírus, a armadilha da polarização se fecha sobre Trump. Seus eleitores passarão os próximos dias deliberando se Trump está capitulando diante do mito do coronavírus ou enfrentando a doença “como um homem”.
Um espetáculo constrangedor de antropofagia partidária que Biden e os democratas devem estar se preparando para assistir de camarote até o dia da eleição.
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