Cinquenta dias antes da eleição americana, a Folha começou a publicar a série de reportagens “50 estados, 50 problemas”, que se debruça sobre questões estruturais dos EUA e presentes na campanha eleitoral que decidirá se Donald Trump continua na Casa Branca ou se entrega a Presidência a Joe Biden.
Até 3 de novembro, dia da votação, os 50 estados do país serão o ponto de partida para analisar que problemas o próximo —ou o mesmo— líder americano terá de lidar.
A discussão sobre o aquecimento global entre os americanos está diretamente relacionada a aspectos econômicos de cada estado. No Kentucky, o histórico de dependência de carvão como fonte de energia, de empregos e de renda distorce a maneira como seus moradores enxergam as mudanças climáticas.
O estado, com Wyoming, Virgínia Ocidental, Pensilvânia e Illinois, está nas primeiras posições no ranking de maiores produtores de carvão dos EUA —juntos, foram responsáveis por 71% da produção total do país em 2019, segundo dados da agência americana de informações sobre fontes energéticas.
Não por acaso, três deles estão em outra lista, bem menos prestigiosa, dos estados nos quais menos da metade da população acredita que aquecimento global é causado principalmente por ações humanas.
De acordo com levantamento de pesquisadores da Universidade Yale, da Califórnia e de Utah, esse índice é de 49% no Kentucky e 45% em Wyoming, Virgínia Ocidental e Dakota do Norte, outra grande produtora de carvão. A média nacional é de 57%.
"[O impacto ambiental] é um tópico que parece tão grande e tão fora de alcance, de escala tão avassaladora, que as pessoas têm dificuldade de acreditar que os humanos possam causar mudanças tão dramáticas no clima", afirma Amanda Gumbert, pesquisadora da Universidade de Kentucky e especialista em recursos hídricos e implementação de práticas de conservação.
Segundo ela, muitos moradores do estado não entendem, por exemplo, que suas ações diárias afetam diretamente a qualidade da água em suas próprias comunidades. "Raramente nos preocupamos com a falta de água, mas a poluição de áreas urbanas e rurais ameaça nossos riachos e rios com sedimentos, excesso de nutrientes e patógenos", explica Gumbert.
A mineração de carvão é a atividade considerada responsável pela maior parte dos problemas relacionados à qualidade da água que se consome no Kentucky. O processo aumenta a quantidade de materiais sólidos, metais e sais dissolvidos, além de alterar o pH da água.
O escoamento de resíduos agrícolas também contribui para os baixos níveis de oxigênio, e algumas regiões sofrem com abastecimento pouco seguro de água potável devido ao tratamento não confiável e ao sistema de distribuição ultrapassado, explica Christopher Barton, professor do programa de ciência ambiental da Universidade de Kentucky.
Para o especialista, a gestão de recursos naturais no estado enfrenta muitos desafios semelhantes aos do restante dos EUA. Em âmbito nacional, o professor aponta "muitas mensagens confusas do governo" que fizeram aumentar o ceticismo sobre o aquecimento global.
O presidente dos EUA, Donald Trump, é conhecido por negar o conhecimento científico. Antes de minimizar a gravidade da pandemia de coronavírus e recomendar tratamentos sem se basear em evidências, o republicano já se opôs à ciência em relação às mudanças climáticas.
Em 2018, por exemplo, o presidente desqualificou um relatório de 1.656 páginas de seu próprio governo sobre os efeitos da mudança climática com apenas duas palavras: "Não acredito".
Trump também se referiu ao tema com ironia ao dizer, em 2017, que poderia "usar o bom e velho aquecimento global" para aliviar as baixas temperaturas no inverno daquele ano.
"Como um cientista que trabalha nos esforços de mitigação das mudanças climáticas globais, é constrangedor e frustrante", diz Barton. "Nosso governo deve se orgulhar de sermos líderes globais na luta contra as mudanças climáticas, e não negar que isso está acontecendo."
A decisão mais séria de Trump em relação ao meio ambiente foi a retirada dos EUA do Acordo de Paris, que deve se concretizar em 4 de novembro, um dia após a eleição em que o republicano tentará se reeleger. O site oficial de sua campanha traz o feito como uma promessa cumprida.
O tema voltou à tona no último debate antes do pleito. Trump repetiu as críticas ao acordo internacional dizendo que ele era injusto para os EUA porque colocava muitas restrições à economia.
"Temos autonomia energética", disse Trump, que conta com um grande número de trabalhadores dos setores de carvão e petróleo em sua base de eleitores. Ele também ridicularizou as fontes de energia eólica e solar como impraticáveis e "insuficientes para manter nossas indústrias".
O candidato democrata, Joe Biden, por sua vez, apresenta abordagem diferente ao tema. Além de prometer a volta dos EUA ao Acordo de Paris, o ex-vice tem um "plano para a revolução de energia limpa e justiça ambiental". Em seu projeto, afirma que o país "precisa abraçar com urgência esse desafio" e entender que "meio ambiente e economia estão completa e totalmente conectados".
Entre outras propostas, Biden diz que, se eleito, deve assinar no primeiro dia de seu governo uma série de decretos "sem precedentes" para se certificar de que os EUA alcancem uma economia de energia 100% limpa e zerem as emissões de carbono até 2050.
O democrata também promete usar sua política externa "para fazer com que todos os países desenvolvidos aumentem a ambição de suas metas climáticas domésticas".
Os planos ousados de Biden motivaram acusações de Trump e de conservadores americanos, segundo os quais essa política ambiental será uma ameaça à indústria americana e seus trabalhadores, aumentando, por exemplo, os custos da energia no país.
Essa é também uma preocupação no Kentucky. Gumbert explica que a geração de eletricidade no estado é predominantemente a carvão, com preços mais baixos em comparação a outros estados. "Será um desafio mudar a geração de energia para fontes de energia limpa se isso também vier com custo maior."
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