Cinquenta dias antes da eleição americana, a Folha começou a publicar a série de reportagens “50 estados, 50 problemas”, que se debruça sobre questões estruturais dos EUA e presentes na campanha eleitoral que decidirá se Donald Trump continua na Casa Branca ou se entrega a Presidência a Joe Biden.
Até 3 de novembro, dia da votação, os 50 estados do país serão o ponto de partida para analisar com que problemas o próximo —ou o mesmo— líder americano terá de lidar.
Em 2016, nasceram 12.282 bebêsem Montana, no noroeste dos EUA. Quatro anos depois, dá para inferir que os pais da maioria dessas crianças estão tendo problemas sérios para conciliá-las com o trabalho.
Segundo relatório recente da Universidade de Montana, 62% dos pais já tiveram que reduzir o expediente em algum momento para cuidar dos filhos, e 44% chegaram a perder um dia de trabalho no mês anterior.
Mais da metade (57%) afirma que teve dificuldades ao procurar uma creche acessível. Há ainda uma minoria relevante de pais que desistiram de continuar os estudos (26%) ou pediram demissão (12%) para cuidar dos filhos.
Entre a população mais pobre e os indígenas —principal minoria racial do estado—, esses problemas se multiplicam: 38% dos pais de baixa renda e 47% dos americanos nativos desistiram de seguir estudando, e 37% dos pais de ambos os grupos recusaram ofertas de emprego porque não teriam onde deixar os filhos.
Montana é um caso extremo de um problema que abrange o país inteiro: os chamados “desertos de creches”. São locais onde as opções de creches ou pré-escola são reduzidas e distantes, tanto pelo isolamento geográfico quanto pela segregação espacial em função de raça ou classe.
Segundo o think tank Center for American Progress, 60% dos americanos vivem em áreas assim.
Em Montana, só um quarto das crianças pequenas frequenta uma creche ou pré-escola. A maior parte delas se reveza entre ficar com um dos pais e outros parentes.
Além de precário, o arranjo custa caro: o mesmo relatório da Universidade de Montana estima que a família média deixe de ganhar US$ 5.700 (R$ 32,5 mil) por ano por ser forçada a trabalhar menos para cuidar dos filhos. (Nos EUA, vale lembrar, o salário é calculado por hora.)
Toda a economia do estado sofre as consequências: as empresas deixam de ganhar US$ 54,6 milhões (R$ 311,7 milhões), e o governo estadual deixa de arrecadar US$ 32 milhões (R$ 182,7 milhões) em impostos por ano. O problema também prejudica a permanência das mães no mercado de trabalho, já que são elas que precisam abdicar da carreira na maioria das vezes —mulheres foram 78% das ouvidas pela pesquisa.
Daria para por a culpa no fato de o estado ser majoritariamente rural e ter uma população pequena e espaçada —a cidade mais populosa de Montana, Billings, tem 109 mil habitantes.
Mas as razões vão além disso. Montana é um dos seis estados dos EUA que não oferecem nenhum tipo de financiamento público para os serviços de creche ou pré-escola.
Lá, a coisa mais próxima disso que existe é uma bolsa para famílias de baixa renda chamada Best Beginnings, criada em 2017, que está longe de dar conta da demanda.
Os pais que pagam por algum tipo de serviço de cuidado dos filhos —seja uma babá, uma creche ou pré-escola— gastam em média US$ 7.900 (R$ 45,1 mil) por ano, mais que a anuidade da Universidade de Montana. Os que pagam por uma creche formal —feita num espaço específico para isso, e não na casa do provedor, como na maioria dos casos— gastam US$ 12,8 mil (R$ 73 mil), ou 22% da renda média familiar.
No país, as creches existem apenas na iniciativa privada, e as políticas públicas para melhorar o acesso a elas variam de estado para estado. Dos 50 estados americanos, 35 financiam parcialmente o acesso a creches ou pré-escolas; 7 oferecem acesso “semi-universal”, ou seja, que existe em quase todos os distritos ou que está em vias de se universalizar, mas ainda não chegou lá.
Apenas dois estados (Vermont e Flórida, além do distrito de Columbia, onde fica Washington) de fato fornecem acesso universal, que não depende de fatores externos como orçamento ou taxas de matrícula.
Na maior parte dos EUA, o financiamento estadual às creches varia de acordo com a economia e as prioridades dos governantes; isso explica por que, entre 2015 e 2017, os investimentos adicionais no setor caíram pela metade. Também explica por que, com a pandemia de Covid-19, essa indústria está sofrendo uma das piores crises de sua história.
No início da quarentena, dois terços dos donos de creches afirmaram que não seriam capazes de sobreviver a um período de fechamento maior que um mês, segundo o Center for American Progress.
O think tank estima que metade das vagas de creche devem desaparecer se não houver intervenção do governo. Isso deve afetar especialmente as famílias latinas ou de baixa renda, que são as menos servidas.
Legisladores de ambos os partidos apresentaram projetos de lei, nos últimos meses, para minimizar os impactos dessa crise silenciosa. A deputada democrata Rosa deLauro, de Connecticut, propôs criar um fundo federal de US$ 50 bilhões (R$ 285,5 bilhões) que ajudaria a estabilizar o setor; já o senador republicano Joni Ernst, de Iowa, apresentou um projeto que pedia que o governo federal pagasse aos estados “o suficiente para cobrir as perdas dos provedores de creches devido à pandemia”.
O candidato democrata à Presidência, Joe Biden, tem investido nessa frente com afinco. Sua campanha elaborou um plano que custaria US$ 775 bilhões (R$ 4,4 trilhões) ao longo de dez anos, visando universalizar o acesso às creches e à pré-escola para as crianças de 3 a 4 anos por meio de crédito e subsídios. A proposta também financiaria a construção de novos estabelecimentos e adaptaria espaços pré-existentes para acolher esse tipo de serviço, como universidades comunitárias.
Biden disse que, para conseguir o dinheiro necessário, ele tiraria incentivos fiscais dos investidores em fundos imobiliários e aumentaria os impostos dos mais ricos (considerados os que ganham mais de US$ 400 mil por ano, ou R$ 2,3 milhões).
No debate na TV contra Trump e durante uma sabatina com perguntas de eleitores, o candidato associou esse plano a um conjunto de políticas públicas mais amplo que visa reduzir a desigualdade racial no país por meio de maior acesso a oportunidades na educação e no mercado de trabalho.
Ele também vem usando como ativo o fato de sua mulher, Jill Biden, ter trabalhado durante 13 anos como professora em escolas públicas, ainda que lecionando para adolescentes. Desde janeiro, Jill virou uma espécie de porta-voz do plano de universalização.
A campanha de Trump, por sua vez, acusou Biden de “reformular a América com práticas socialistas” também nessa instância. O atual presidente e candidato à reeleição não tem planos específicos para as crianças em idade pré-escolar e propôs um aumento de apenas US$ 1 bilhão (R$ 5,7 bilhões) no orçamento da área para o ano que vem —o que foi criticado unanimamente por especialistas.
Ainda que Montana tenha preferido Trump nas eleições de 2016, com 55% dos votos, seu governador desde 2013 é o democrata Steve Bullock. Em 2017, Bullock criou o Stars, um programa piloto que investiu US$ 6 milhões (R$ 34,2 milhões) em 18 instituições de ensino ou creches voltadas a crianças de 4 e 5 anos. Considerado bem-sucedido, ele foi a única experiência concreta de investimento estatal na área.
Apesar disso, em 2019, os legisladores do estado não conseguiram chegar a um acordo sobre uma eventual expansão, e o programa foi revogado. Duas das creches beneficiadas fecharam devido à decisão no mês seguinte e uma passou a cobrar mensalidade.
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