Eleição de Biden colocaria em xeque carga ideológica da política externa de Bolsonaro

Auxiliares do presidente, por outro lado, apostam em relação pragmática devido a interesses geopolíticos

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Brasília

Ainda que uma vitória de Joe Biden nas eleições americanas coloque em xeque o forte componente ideológico da política externa do governo Jair Bolsonaro, auxiliares do presidente afirmam acreditar que o democrata buscará uma relação pragmática com Brasília devido a interesses comerciais e geopolíticos.

Por outro lado, é provável que o relacionamento seja marcado por animosidades e má vontade, o que traria dificuldades para a agenda do líder brasileiro. O cenário foi traçado por conselheiros e aliados do presidente, além de diplomatas, que falaram com a Folha sob condição de anonimato.

Auxiliares preveem que, para não se indispor com Biden, Bolsonaro seria pressionado a mudar a orientação da política externa, reduzindo a carga ideológica e e procurando manter uma agenda com Washington pautada em interesses comerciais.

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no Itamaraty, em Brasília
O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no Itamaraty, em Brasília - Adriano Machado - 22.out.20/Reuters

Sem os EUA, seria mais difícil para o Brasil, por exemplo, embarcar em iniciativas que defendem, em fóruns internacionais, valores conservadores, como o recente apoio à Declaração de Consenso de Genebra, documento político contra o aborto e em defesa da família baseada em casais heterossexuais.

Nas palavras de um diplomata, Bolsonaro pode ter de adotar uma tática de “centrão” na política externa —numa referência à aproximação do presidente com partidos que flutuam ao sabor do momento no Congresso, deixando de lado o discurso contra a chamada velha política em nome da governabilidade.

Um conselheiro próximo a Bolsonaro lembrou ainda da convivência dos ex-presidentes George W. Bush e Luiz Inácio Lula da Silva. À época, o petista liderou iniciativas que contrariavam os interesses dos EUA, mas manteve bom relacionamento pessoal com o republicano, que visitou o Brasil em duas ocasiões.

Assessores, entretanto, ressalvam que qualquer processo de moderação das diretrizes da diplomacia brasileira depende, antes de tudo, de uma decisão do próprio Bolsonaro —e até o momento ele não deu mostras de que pretende se distanciar do trumpismo.

Em discurso no fim de outubro, o chanceler Ernesto Araújo, por sua vez, intensificou a aposta numa agenda radicalizada nos costumes e pela defesa do conservadorismo. “O Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”, declarou.

Assessores também se preocupam com um flanco que poderia ser explorado por Biden para colocar pressão e até mesmo para "dar o troco” pela simbiose do brasileiro com Donald Trump: o meio ambiente.

O temor é de que o ex-vice dos EUA seja cobrado pela ala mais progressista do Partido Democrata a mostrar compromisso com a agenda. E Bolsonaro —frequentemente retratado no exterior como um líder de tendências autoritárias que minimiza os incêndios na Amazônia— pode ser o alvo mais óbvio para tal.

Durante o primeiro e caótico debate presidencial nos EUA, Biden, ao se referir à Amazônia, disse que “a floresta tropical no Brasil está sendo destruída". Indicou que atuaria para oferecer recursos ao país para a preservação ambiental e, ao mesmo tempo, sugeriu retaliações econômicas ao governo brasileiro caso os índices de desmatamento não melhorem. Bolsonaro classificou a fala como “lamentável”.

As diferenças entre Bolsonaro e Biden fazem com que analistas comparem o eventual panorama à eleição do democrata Jimmy Carter em 1976 e a pressão exercida à época sobre o regime militar no Brasil.

Eles destacam ainda que, nesse cenário, o brasileiro se encontraria na incômoda situação de manter relações estremecidas com os principais atores globais. Afinal, Bolsonaro já protagonizou choques com a China, maior parceiro comercial do país, e com líderes de países da União Europeia, como o presidente francês, Emmanuel Macron, e a chanceler alemã, Angela Merkel.

A perspectiva de um futuro relacionamento difícil é reforçada pela própria postura de Bolsonaro nas últimas semanas. Em vez de se distanciar da disputa, o presidente recebeu em 20 de outubro uma delegação chefiada pelo Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O’Brien.

Na ocasião, disse torcer pela vitória de Trump e que, "se for a vontade de Deus", comparecerá "à posse do presidente brevemente reeleito nos EUA". "Não preciso esconder isso, é do coração", afirmou Bolsonaro.

Assessores, no entanto, apostam que o país ficaria fora do foco democrata num primeiro momento. Embora estratégico na América Latina, o Brasil sempre esteve longe das prioridades americanas —Biden deve dar atenção especial à China, à Rússia, à reaproximação com a Europa Ocidental e ao Oriente Médio.

Outro auxiliar lembra que Biden é um moderado e que dificilmente alienará completamente o Brasil. Como justificativa, conselheiros argumentam que os EUA têm comércio superavitário com o país (US$ 3,2 bilhões) e que nem todas as diretrizes devem mudar numa eventual troca na Casa Branca.

O principal exemplo são as ações americanas para reduzir a influência da China na arena global e para barrar a participação de empresas do país asiático no mercado do 5G. Esse objetivo é considerado uma meta do establishment americano e algo que transcende divisões entre democratas e republicanos.

O Brasil é hoje alvo de pressões de Washington para barrar a atuação da chinesa Huawei no fornecimento de equipamentos para as redes de 5G, um movimento diplomático que deve continuar mesmo com Biden.

Membros do governo brasileiro avaliam que, mesmo com mudanças na forma de atuar, com o democrata revalorizando fóruns multilaterais e adotando uma postura menos agressiva com aliados, o objetivo de contrapor o avanço da China permanecerá, independentemente de quem vencer as eleições.

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