Descrição de chapéu Eleições EUA 2020

Eleição nos EUA em meio à gripe espanhola teve medo de máscara e luta por voto feminino

Em 1918, país cancelou comícios e viu participação cair em momento importante para o sufrágio

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São Paulo

Imagine a seguinte cena: pessoas na rua começam a discutir sobre política calorosamente até que deixam de lado suas máscaras e o distanciamento social, obrigatórios para evitar contágio durante a pandemia.

E são multadas pela polícia.

O que pode parecer um episódio na cidade de São Paulo em 2020 é, na verdade, um relato do jornal Oklahoma Tribune de novembro de 1918, ano em que os Estados Unidos passaram por uma eleição para o Congresso em meio à pandemia da gripe espanhola.

“Muitos álibis foram apresentados pelos acusados, que afirmaram que eles eram seriamente prejudicados pela máscara em discussões com oradores mais fluentes. A lei se recusou a aceitar qualquer desculpa”, diz um trecho do jornal.

Com homens enviados para a Primeira Guerra Mundial, as mulheres tiveram atuação importante na linha de frente contra a pandemia da gripe espanhola
Com homens enviados para a Primeira Guerra Mundial, as mulheres tiveram atuação importante na linha de frente contra a pandemia da gripe espanhola - Biblioteca do Congresso dos EUA

O pleito daquele ano, que terminou com os republicanos recuperando a maioria na Câmara e no Senado, foi marcado não só pelas restrições impostas pela pandemia, mas também pela luta das mulheres, que queriam ter direito a voto na Constituição federal.

“O movimento [pelo sufrágio feminino] estava tão espalhado pelos EUA por já estar em ação fazia muito tempo que as pessoas não precisavam viajar [para militar]. As sufragistas locais estavam prontas para trabalhar, e elas trabalharam”, diz Ellen Dubois, professora de história política das mulheres da Universidade da Califórnia.

No Colorado, lembra Dubois, mulheres podiam votar desde 1893. Já na Califórnia e em Nova York, elas conquistaram o direito em 1917 e votaram pela primeira vez durante as eleições da gripe espanhola.

A pesquisadora explica que o movimento era organizado por meio de associações nacionais, mas também a partir de grupos menores locais.

Em 1918, diversos estados realizaram referendos pelo sufrágio feminino. Em um artigo, Dubois conta que o movimento das mulheres elegeu quatro locais-chave para concentrar seus esforços: Michigan, Dakota do Sul, Oklahoma e Louisiana, o único onde elas seriam derrotadas.

“Esse novo flagelo está entristecendo muitos lares sufragistas e representa um novo e grave obstáculo às nossas campanhas em prol de um referendo e às campanhas do Congresso e do Senado”, escreveu Carrie Chapman Catt, considerada uma das principais lideranças do movimento.

Retrato de Carrie Chapman Catt, líder do movimento sufragista, tirado entre 1909 e 1932
Carrie Chapman Catt, líder do movimento sufragista, na primeira metade do século 20 - Biblioteca do Congresso dos EUA

Além de conquistar direitos estaduais, o que já vinha acontecendo, as sufragistas buscavam vencer em nível nacional. Quando a gripe espanhola chegou aos EUA, a medida já tinha sido aprovada pela Câmara, mas precisava passar pelo Senado, o que só aconteceria de fato em 1919.

O Tennessee foi o último estado a ratificar o sufrágio feminino, que só então foi registrado na Constituição dos Estados Unidos, em 1920. “O mais importante para os avanços conquistados, entretanto, foi a ampla organização popular das sufragistas”, analisa Dubois.

Sufragista Bertha M. Furman, que trabalhava na Liga das Mulheres Eleitoras, ensinando outras mulheres a votar
Sufragista Bertha M. Furman, que trabalhava na Liga das Mulheres Eleitoras, ensinando outras mulheres a votar - 22.fev.2918/Library Of Congress

“Também tinha um terceiro partido, que era o socialista, que não tinha apoio majoritário, mas era altamente importante em algumas cidades”, explica Sean Purdy, professor de história dos EUA na Universidade de São Paulo.

Nas eleições daquele ano, os socialistas ampliaram de um para dois seus assentos na Câmara dos Representantes. Dois anos depois, o líder Eugene Debb conseguiria o feito de, mesmo preso, receber quase 1 milhão de votos no pleito presidencial.

“Socialistas e sindicalistas tinham uma política central de defender direitos de imigrantes. Então quem apoiava não só esses movimentos sufragistas, mas direitos trabalhistas, eram partidos de esquerda, e isso é muito apagado na história americana”, afirma Purdy.

Tanto o professor da USP quanto Dubois lembram que foi por meio da distribuição de textos que a militância conseguiu superar as restrições da pandemia.

“Gripe amarra a política”, dizia uma manchete do Washington Post, que contava como os comitês nacionais democratas e republicanos haviam adaptado suas campanhas.

“O cancelamento de encontros políticos veio primeiro em estados isolados, a maioria ao leste do Mississippi. Depois estados mais a oeste começaram a virar notícia, e a desilusão logo trouxe a consciência de que os discursos teriam que ser descartados. Ontem deveria marcar o início de um redemoinho de discursos”, dizia o jornal.

O trecho ilustra não só como a gripe se espalhava pelo país, mas também como cada estado, assim como hoje, vivia condições sanitárias diferentes. As reportagens publicadas na época em diferentes jornais do país mostram que em diversos lugares a pandemia era tratada como distante até pouco antes do início das campanhas —forçando políticos a cancelar eventos em cima da hora.

A solução encontrada por republicanos e democratas foi usar jornais e outros tipo de publicidade escrita, como pôsteres e folhetos, além de intensificar o envio de cartas aos eleitores, eventualmente com um encontro pessoal à porta para tentar conquistar um possível voto —estratégia também usada pelas sufragistas.

“Finalmente, o uso de anúncios em outdoors está sendo estudado e provavelmente será amplamente usado”, prosseguia a reportagem.

Resolvido o impasse das campanhas, houve o problema do dia da votação, marcado para 5 de novembro. Tanto o registro de eleitores quanto o depósito dos votos foi realizado em locais arejados, e tendas foram construídas quando isso não era possível.

Às vésperas da eleição, o Oakland Enquirer alarmava que pelo menos 25% dos oficiais que trabalhariam nas eleições pelo condado de Alameda haviam se demitido em razão da gripe.

No dia da votação, o Oakland Tribune noticiou que faltou gente para trabalhar nas urnas, contando ainda que muitos oficiais adoeceram e não puderam comparecer.

Como o voto não é obrigatório no país, havia em 1918 um desafio que permanece em 2020: convencer as pessoas a sair de casa para votar.

Os números mostram que, perto do dia da eleição, a curva de casos e mortes pela pandemia já decrescia em diversos estados, mas não o suficiente para evitar que fossem tomadas precauções, como o uso de máscaras e a proibição de que muitas pessoas votassem ao mesmo tempo, no mesmo local.

No mesmo artigo em que avisava que as escolas ainda não poderiam voltar a funcionar, o Los Angeles Times ressaltava que seria a primeira vez em que milhares de pessoas ficariam diante de alguém com máscara.

“A determinação não foi feita para assustar pessoas para longe das urnas, mas para dar proteção adicional aos eleitores contra a doença”, tranquilizava a reportagem.

Autoridades médicas fizeram um apelo ainda maior na primeira página do Oakland Tribune, dias antes da eleição. “Não há o menor perigo em votar se você usar sua máscara”, afirmavam, antes de darem seu argumento final. “Se você ficar em casa, não estará sendo beneficiado pelo ar fresco e pela luz do sol que poderá aproveitar enquanto cumprir seu dever patriota como cidadão americano.”

Nem o espírito patriota evitou uma brusca queda da participação popular naquela votação, segundo o US Election Project. O ano de 1918 é o primeiro desde 1822 em que menos da metade da população apta a votar foi às urnas (sem considerar as votações para presidente).

Em 1914, pouco mais de 50% dos eleitores votaram, taxa que caiu para menos de 40% no ano da gripe espanhola, e que diminuiu para 36% em 1922 e para 33% em 1926 —desde então, nunca mais passou da metade. A pandemia da gripe espanhola deixou, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, 50 milhões de mortos no mundo, 675 mil deles nos Estados Unidos.

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