Enquanto o Legislativo da França deu o primeiro passo para ampliar de 12 para 14 semanas o prazo legal para realizar um aborto, o governo do país prepara um projeto de lei para punir com multa e prisão médicos que forneçam "certificados de virgindade", usados por famílias religiosas em acordos de casamento.
No caso do aborto, a medida foi aprovada em primeira leitura na Assembleia e seguiu para o Senado na sexta (9). Se a extensão for aprovada, a lei francesa vai se igualar à da Espanha, que permite o aborto até 14 semanas.
Segundo o Centro de Direitos Reprodutivos, 41 países europeus permitem o procedimento de forma ampla (87% do total), com prazo que varia de 12 a 24 semanas. A Suécia o autoriza até 18 semanas, a Holanda, até 22 semanas, e o Reino Unido, até 24 (com algumas restrições).
Dados do governo francês indicam que os chamados abortos tardios (com mais de dez semanas de gravidez) eram 5% dos casos —o impacto da pandemia de coronavírus aumentou a dificuldade das mulheres que querem interromper a gestação, segundo a relatora Albane Gaillot, do grupo EDS (Ecologia, Democracia, Solidariedade), de centro-esquerda.
A cada ano, segundo Gaillot, de 3.000 a 5.000 mulheres francesas acabam viajando a outros países para abortar, porque o prazo de 12 semanas da lei francesa é excedido.
“O fechamento de fronteiras durante a crise de saúde e a impossibilidade de as mulheres viajarem aumentam o temor de um aumento significativo no número de gravidezes indesejadas”, afirma ela.
Outro problema é que os abortos tardios são justamente os que mais deixam de ser feitos por recusa dos médicos, situação que se agravou quando o Sindicato Nacional dos Ginecologistas Obstetras Franceses passou a se opor à prática, afirmando em 2018 que ela equivale a homicídio.
Além de ampliar o prazo para o aborto, Gaillot pediu a retirada de um artigo específico de cláusula de consciência na lei do aborto, que permite a um médico recusar-se a cuidar de um doente, sem ter de apresentar razões.
O relatório afirmava que a brecha levava a França para o mesmo caminho da Itália, em que 70% dos médicos se recusam a praticar o aborto declarando objeção de consciência.
Segundo Gaillot, cerca de 50 mil mulheres são forçadas a praticar abortos ilegais no país por não conseguirem fazer valer o direito legal ou por perderem o prazo estabelecido na lei.
O texto (no original) passou com 86 votos a favor, e 59 contra (7 deputados se abstiveram), com a maioria dos votos do EDS e da esquerda.
O grupo Republicanos, de direita, votou majoritariamente contra a proposta. Embora a maioria dos deputados do governista LREM tenha aprovado o projeto, a gestão de Emmanuel Macron disse apenas que o tema era "delicado" e que contava com a "sabedoria" dos deputados.
O governo encaminhou a questão ao Comitê Consultivo Nacional de Ética —para analistas, uma tentativa de derrubar as mudanças sem precisar se envolver politicamente no Legislativo.
O Senado tem também uma composição mais conservadora: 43% de seus membros são do Republicanos, enquanto na Assembleia eles são 18%.
Certificados de virgindade
Já o combate aos certificados de virgindade faz parte de um projeto para reforçar valores seculares e combater o que Macron chamou de "separatismo islâmico".
Além de prever punições aos médicos, o projeto, que deve ser apresentado ao Parlamento em dezembro, segundo o governo, incluirá punições a pais ou noivos que exijam o teste de virgindade.
Reportagem da TV France 3 afirmou que cerca de 30% dos médicos franceses dizem já ter recebido pedidos para fornecer certificados como esse —a maioria diz ter recusado.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, a prática de inspecionar o hímen de uma mulher ou menina viola seus direitos humanos e não comprova se ela teve relações sexuais ou não, já que o hímen pode ter sido rompido por outros motivos ou pode ficar intacto mesmo depois de uma penetração.
Em 2018, a ONU publicou uma declaração pedindo a governos que proíbam esses testes e conscientizem as comunidades contra “os mitos relacionados à virgindade e as normas que enfatizam o controle da sexualidade e do corpo de mulheres e meninas".
Sem campanhas educacionais, afirmam entidades de direitos civis, a proibição vai apenas criar uma cortina de silêncio ao redor do problema, sem resolver os preconceitos e o desrespeito às mulheres.
À TV francesa médicos relataram já ter dado certificados a meninas que temiam violência física de parentes ou a rejeição dos pais.
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