Cinquenta dias antes da eleição americana, a Folha começou a publicar a série de reportagens “50 estados, 50 problemas”, que se debruça sobre questões estruturais dos EUA e presentes na campanha eleitoral que decidirá se Donald Trump continua na Casa Branca ou se entrega a Presidência a Joe Biden.
Até 3 de novembro, dia da votação, os 50 estados do país serão o ponto de partida para analisar com que problemas o próximo —ou o mesmo— líder americano terá de lidar.
Michigan não foi o lugar onde o carro foi inventado, mas sim onde surgiu a linha de montagem para automóveis, no começo do século 20. A invenção de Henry Ford foi a chave para produzir mais a um custo menor. Com isso, Detroit viveu décadas de glória, seguidas por uma longa e lenta decadência.
Para os trabalhadores, o avanço da indústria automotiva significou bons salários mesmo com pouca formação, já que não era preciso saber montar um carro inteiro, mas apenas dominar etapas do processo.
Assim, milhares foram a Michigan em busca de uma vida melhor. Em meados do século 20, Detroit chegou a ser a quarta maior cidade dos EUA, com 1,8 milhão de habitantes. Hoje, tem um terço disso.
Para os empresários, a linha de montagem cortava custos, mas, conforme a concorrência aprendeu a usá-la, deixou de ser vantagem. A resposta para manter os lucros foi levar a produção para lugares com salários menores, em destinos cada vez mais distantes: o sul dos EUA, o México, o Leste Europeu, a China.
Assim, para milhares de trabalhadores industriais, a globalização significou apenas que sua vaga foi parar em um país distante. Donald Trump se apropriou desse rancor e fez campanha em 2016 prometendo trazer de volta os empregos e o auge da América dos anos 1950.
A China, potência industrial, consolidou-se como o inimigo.
Só que as empresas se acostumaram a pagar menos. O salário minimo mensal em Xangai é de cerca de US$ 370 (R$ 2.093). Em Michigan, é de US$ 9,65 (R$ 54,60) por hora ou US$ 386 (R$ 2.184) semanais —o que faz o americano ganhar em uma semana mais do que os chineses recebem pelo mês inteiro.
Sem contar que, na China, é comum dar expediente por mais de 60 horas por semana.
Para complicar, a cada crise econômica o setor industrial costuma fechar vagas e buscar novos meios de cortar custos, como investir em automação. A crise de 2008 quase levou a GM, que tem sede em Detroit, à falência. E, agora, a pandemia trouxe dificuldades que devem demorar a passar.
Entre fevereiro e abril deste ano, Michigan perdeu mais de 1 milhão de empregos. Metade foi recuperada até julho, mas a retomada se dá em ritmo lento. Um estudo da Universidade de Michigan, divulgado em setembro, estima que a volta completa dos empregos perdidos deve ocorrer só no fim de 2022.
Segundo o think tank EPI (Economic Policy Institute), os EUA perderam 5 milhões de empregos industriais e 91 mil fábricas fecharam entre 1998 e 2018. Na gestão Trump, antes da pandemia, foram criados cerca de 500 mil empregos industriais no país, o que mal repôs 10% das vagas perdidas nas décadas anteriores.
Trump buscou dar incentivos fiscais a empresas e retirar regulações ambientais, algo bem-vindo por indústrias poluentes, como o setor de petróleo. Essas medidas animaram novos investimentos, mas os gestos bruscos da diplomacia da Casa Branca e a questão cambial deixaram os executivos ressabiados.
Para o EPI, a principal causa da desindustrialização é a alta do dólar. A moeda mais forte torna ainda mais barato importar produtos de fora do que fabricá-los em solo americano e faz com que aqueles feitos na América custem mais caro no exterior, o que os coloca em desvantagem no mercado internacional.
O think tank avalia que os incentivos fiscais de Trump acabaram tendo um efeito indesejado: ao atrair mais capital para os EUA, ajudaram a valorizar o dólar. "Se você aumenta as tarifas de importação sem prevenir a apreciação do dólar, os benefícios podem ser neutralizados", diz o relatório.
O instituto também destaca que a moeda americana teve nova alta durante a pandemia, por ser considerada um porto seguro para investimentos em meio à recessão global.
A desindustrialização é tema importante da eleição por influenciar o voto em estados-pêndulo, como Michigan, que a cada eleição votam em um partido e são capazes de definir o resultado nacional.
O democrata Joe Biden lidera as pesquisas lá.
Em 2020, Trump promete seguir confrontando outros países para trazer empregos de volta e se coloca como defensor de setores poluentes, como o do carvão. Já Biden defende criar milhões de empregos por meio da transição para energias não poluentes, como o uso de eletricidade para mover carros.
Um dos locais onde veículos autônomos e elétricos estão sendo desenvolvidos é em Detroit, cidade que chegou a pedir falência em 2013 e que busca agora ressurgir.
A esperança é repetir o sucesso do Vale do Silício, que lucra mais com a criação de tecnologias do que com a fabricação dos produtos. Celulares e computadores de marcas californianas são considerados americanos mesmo tendo sido montados em qualquer canto do planeta.
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