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Suhayla Khalil

Para Bolsonaro talvez não, mas para Brasil uma derrota de Trump pode não ser tão ruim

Em alinhamento fundamentalista com EUA, país tem cedido demais em negociações

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Suhayla Khalil

Professora da pós-graduação da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e pesquisadora colaboradora do Núcleo de Direito Global e Desenvolvimento da FGV

Os olhos do mundo inteiro se voltam aos EUA. No Brasil, o americanismo fundamentalista de figuras do governo e o personalismo que tem dado o tom das relações bilaterais lançam ainda mais preocupação sobre o resultado do processo eleitoral americano. Assim, multiplicam-se notícias e análises.

De imediato, parece haver uma certa convergência de que um possível governo Joe Biden seria pior para o Brasil, uma vez que o democrata já sinalizou um endurecimento no tratamento de algumas agendas com Brasília, como as pautas de meio ambiente e de direitos humanos. Já a reeleição de Donald Trump favoreceria o país, dado que há uma clara identificação ideológica entre ele e Jair Bolsonaro.

O presidente Jair Bolsonaro durante discurso após encontro com o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O'Brien, em Brasília
O presidente Jair Bolsonaro durante discurso após encontro com o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Robert O'Brien, em Brasília - Evaristo Sá - 20.out.20/AFP

Entre as possíveis perdas brasileiras com a derrota do republicano são apontados um conjunto de acordos comerciais com os EUA, o endosso à candidatura do Brasil à OCDE e o reconhecimento de um lugar estratégico para o país em uma cooperação militar bilateral. Nada muito concreto até agora.

Que tal darmos dois passos para trás de forma a termos uma visão mais ampla da situação?

Primeiro, é preciso compreender que nenhum governo na história brasileira conseguiu defender seus interesses a partir de um alinhamento automático. Se conseguisse fazê-lo, o governo Bolsonaro realizaria um feito inédito. Mesmo na região, a Argentina das relações carnais com os Estados Unidos também colheu os frutos amargos desse tipo de inserção.

Segundo, toda política externa deve ser elaborada de forma a defender o interesse nacional, que não pode ser visto de forma dissociada do bem-estar de sua população. Com o Brasil se alinhando a teocracias em temas como a mutilação genital feminina na ONU, há, no mínimo, que se desconfiar das visões de mundo e das concepções de interesse defendidas por esse governo no plano internacional.

Em um alinhamento dessa natureza com os EUA, o Brasil tem cedido demais em negociações, como no caso da tarifa zero ao etanol, política que não contou com nenhuma reciprocidade de Washington.

A cessão do uso comercial da base militar de Alcântara também marca esse relacionamento desfavorável.

A base é uma das mais bem localizadas do mundo, e o acordo não prevê transferência de tecnologia ao Brasil. Um problema recorrente nas relações bilaterais, principalmente em governos alinhados.

Considerando que estamos em um momento de ascensão chinesa e de disputas tectônicas de poder, essa postura brasileira pode cobrar um preço alto. A China é o principal parceiro comercial do Brasil desde 2009 e disputa com os EUA a vanguarda da nova etapa do capitalismo informacional, com a tecnologia 5G. Uma visão estratégica de política externa dentro desse contexto é fundamental.

Afinal, para Bolsonaro não sei, mas, para o resto do Brasil, uma vitória de Biden pode não ser tão ruim assim. É preciso romper esse alinhamento de alguma forma. Se o Brasil não está disposto a fazê-lo, que a outra parte então esteja. Como diz o ditado popular, tem coisa que é melhor perder do que achar.

E essa “parceria estratégica” atual entre os dois países certamente é uma delas.

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